Histórias da guerra - 2 (com a devida vénia ao meu querido amigo Agostinho Nogueira)
O BIGODES, um guarda costas e peras
A preparação técnica dos militares nesse tempo era cheia de
nove horas…não fosse a guerra um assunto sério.
Os praças (soldados rasos e cabos) que estavam naquela manhã
no picadeiro do RI 16 tinham assentado praça cerca de três meses antes e tinham
feito a recruta aprendendo disciplina militar, lei das continências, exercício
físico, ordem unida, noções de armamento e prática de tiro. No fim da recruta
era o juramento de bandeira. A seguir, vinham as especialidades. A maior parte,
pelo menos uns 90%, destinavam-se a atiradores. Havia ainda maqueiros ou
auxiliares de enfermagem, radio telegrafistas, motoristas, ajudantes de
mecânico, cozinheiros, escriturários e muitos mais.
Por sua vez os cabos milicianos (futuros furriéis) e
aspirantes a oficiais tinham já cerca de um ano de formação, entre recruta,
especialidade, instrução de recrutas, e cursos de pós graduação necessários ao
normal funcionamento das companhias, uma vez chegados ao ambiente de guerrilha.
Calhou-me Minas e Armadilhas em Tancos, enquanto outros dois aspirantes da
companhia fizeram Ranger’s em Lamego, o pincel de que todos queriam fugir.
Nos cerca de dois meses em Évora, continuava a formação e
endurecimento das praças - ginástica e ordem unida na Parada de S Brás,
trabalhos de estrada, armamento e provas de tiro. Depois disso o batalhão
seguiu para o CMSM (Campo Militar de Santa Margarida) nas proximidades de
Tancos, mas do outro lado do rio, onde ia processar-se o IAO - Instrução de
Adaptação Operacional.
O Campo impressionava pela sua grandeza, sendo um dos
maiores da Europa. Ali, numa extensa área de mato, da freguesia de Santa
Margarida da Coutada (daí o nome…) tinha-se construído um campo de manobras que
podia, salvo erro, alojar todo o Exército Português. Uma imponente Porta de
Armas seguida de uma avenida rectilínea de mais de um quilómetro, destacando-se
ao fundo uma capela construída ao jeito de uma tenda de campanha. Percorrendo a
avenida, à direita e à esquerda, as placas identificativas dos diversos
aquartelamentos - 1º RI, 2º RI, 3º RI (leia-se 1º, 2º, 3º Regimentos de
Infantaria) … e muitas, muitas outras placas indicando os diversos regimentos,
serviços, armazéns, parques auto, repartições, sanitários, messes, comandos,
áreas de lazer, um nunca mais acabar…
Por ali nos alojámos consoante as instruções, e continuámos
a formação, muito tempo a percorrer trilhos estreitos no mato e muitas horas na
carreira de tiro…
…e foi aí que morreu ingloriamente o primeiro militar do
batalhão. Estava-se numa instrução de lançamento de granadas. A matéria já fora
dada e repetida vezes sem conta…
- agarrar a granada com a mão direita de modo que a alavanca
de segurança fique presa pela mão…
- endireitar os grampos da cavilha de segurança…
- com o polegar ou indicador da mão esquerda, retirar a
cavilha, sem nunca soltar a alavanca.
- atirar a granada… a alavanca solta-se… daí a alguns
segundos a granada explode.
Naquele dia um soldado estava distraído, agarrou a granada
sem prender a alavanca, mandaram retirar a cavilha… a alavanca saltou… o
soldado que estava ao lado deu por isso e gritou:
- Eh pááá!...
Não teve tempo de dizer o resto. A granada explodiu nas mãos
do atirador... Apesar de ser de outra Companhia não deixou de ser o primeiro
choque….
Era Dezembro, humidade e um frio dos diabos, às vezes, ao
abrigo de alguma moita, fazia-se uma fogueira para aquecer as mãos.
O Bigodes chegou-se a mim com uma proposta muito ao ouvido:
- P’ra calhar bem, vossemecê mais logo havia de me emprestar
os sês galões…
- Não devo estar a ouvir bem…emprestar-te os galões?...
- É cá uma ideia minha…
- Conta lá…se queres levar os galões…
- É que eu queria ir à Dentola…
- ???
- É uma mulher que anda por aí a contentar os soldados…
- E o que é que isso tem a ver com os galões?
- É que ela leva sete e quinhentos, mas aos que usam galões
não leva nada…
Não caí de cu por pouco…O estafermo da mulher em vez de
cobrar mais a quem ganhava mais, ainda dava uma borla….
- É para fazerem propaganda dela…
- Escuta lá bem e não digas que vais daqui. Quando acabar o
exercício vou tomar banho. A farda fica em cima da cama…mas olha que se houver
algum problema eu não te emprestei os galões, tu é que os foste buscar…Ah, e
quero-os lá à hora de ir jantar…
No dia seguinte íamos a passar pelo trilho habitual…
- Mê aspirante, aí tá o qui ei…
- O quê?
- Ali, atrás daquele chaparro…
Voltei a cabeça discretamente, lá estava meia dúzia de
soldados à espera de vez…
Mais tarde vim a saber. Aquele que arranjava os galões
convidava os amigos e iam passando os galões de mão em mão… ou de ombro em
ombro, para ser mais correto…
Nem me dei ao trabalho de saber quantos usaram os meus
galões… para vergonha, um já me chegava!
Agostinho Nogueira.
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