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quarta-feira, 19 de outubro de 2016

PELA BOCA MORRE O PEIXEVá a rubálos a outra banda! Eu não quero desse peixe.

E também não o quero ver a pescar por aqui, tem de ir com a sua vara, ou com essa cana para outras águas mais claras, menos poluídas, longe do poder das fossas.


E depois não se atreva a comer desse peixe, pode morrer aqui perto, seu nauseabundo, pela boca se morre e não é só o peixe.

Oferecê-lo, nem a um amigo a não ser que esse seja um Vale , Valentim , Isaltino, Felgueiras, Mardock, não, a este não que já está do outro lado, atrás das grades, mas, tantos outros ainda por cá, o que foi da administração interna, o que foi ministro da economia, o que foi ministro das obras públicas, o que foi presidente do conselho de administração dum grande banco, hoje, provisoriamente, nacionalizado. Qualquer um destes precisaria dum dos seus robalos.

Deixemos de mistérios, ofereça os robalos ao ministério e corta, se o mal de raiz.
arrais
MEMÓRIAS DE MILITAR
O navio deu sinal para largar as amarras dos cabeços e o Pátria, agora ligado
ao cais apenas pela ténue força das serpentinas que os passageiros civis e quem
deles se despedia tinham lançado, auxiliado pelos rebocadores, afastou a proa da
muralha, avançou para o meio do rio. A estação marítima de Alcântara, apinhada
de gente que se despedia de nós, começou a ficar pela nossa popa, no entanto os
militares e os passageiros civis, que enchiam o convés continuaram a acenar aos
familiares e amigos que se mantinham no cais.
Deixei de olhar para aquela multidão, onde os meus se confundiam e passei a
observar o rio à beira do qual, tinha vivido até aquele dia, no cais que acabávamos
de deixar, vivi muitas horas de alegria observando o movimento de navios que
chegavam e largavam sem cessar, os ruídos daquele local eram-me familiares, as
gruas, os gritos dos estivadores, os apitos dos rebocadores e catraieiros, o barulho
dos cabos a bater na água, tudo isso eu recordava agora com muita saudade. Veiome
à memória um episódio a que ali tinha assistido, num dos muitos dias em que,
juntamente com o meu amigo Alcino, faltei à escola e fomos como habitualmente,
para a doca Rocha do Conde D´ Óbidos, comer a bucha do almoço e ver os barcos.
Quando chegamos sentamo-nos junto à ponte móvel que fazia a travessia da
boca da doca do Espanhol e separava a gare marítima dos estaleiros navais ali
existentes. Passados alguns instantes, o manobrador accionou a abertura a fim de
dar passagem a um cargueiro que seguia, rebocado à proa e trazendo um outro
rebocador a aguentar a popa. De súbito, o cabo de reboque partiu-se, e, a
embarcação liberta do enorme esforço, afocinhou e meteu a proa debaixo da água,
em segundos foi a pique.
Passados os primeiros momentos de espanto, vimos que tínhamos ali
programa para o resto da tarde. Primeiro, foi a salvação da tripulação, esta era
composta por quatro homens, três dos quais como estavam no convés, tinham, no
momento do afundamento, saltado logo para a água, o quarto (o maquinista) veio à
superfície passados alguns segundos. A tripulação foi recolhida pelo pessoal que se
encontrava no cais e seguiu numa ambulância dos bombeiros, que entretanto
tinham sido chamados, seguiram-se então os comentários, sobretudo daqueles que,
chegados depois dos acontecimentos, nada tinham visto. O barco submerso,
impedia a saída às embarcações, sendo por isso urgente retira-lo, era pois, a essa
operação que nós queríamos assistir.
Tivemos sorte, passado algum tempo, parou junto a nós, uma viatura da
AGPL e o pessoal começou rapidamente a descarregar do seu interior, material de
mergulho, material igualzinho aquele que nós estávamos habituados a ver nos
filmes e livros de aventuras, (naquele tempo o mergulho autónomo não estava
ainda muito divulgado). O mergulhador, auxiliado pelos seus companheiros, vestiu
o escafandro calçou os sapatos de chumbo e em seguida foi-lhe colocado o
capacete e ligada a mangueira do ar. Findas estas operações, entrou na água e
desapareceu.
Ainda ali ficamos muito tempo, ouvindo as explicações do pessoal do porto e
doutros entendidos, que ali se tinam reunido, mas como do mergulhador não havia
sinal e as horas haviam passado rapidamente tivemos, (embora com pena) de voltar
para casa, nunca cheguei a saber como foi retirado o barco, pois quando ali voltei já
estava tudo normalizado.
O navio começava agora a descer o rio, perante os meus os olhos desfilavam
as suas margens e as minhas recordações.
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A doca de Santo Amaro, onde tantas vezes fiquei a ver as mulheres
descarregar umas vezes carvão e outras sal, parecia-me ainda vê-las a subir a
prancha de madeira, que unia as embarcações ao cais. A prancha à medida que
subiam com as canastras à cabeça, descrevia uma flecha, que de tão acentuada, me
deixava confuso o porquê de não caírem. Confesso que ali fiquei várias vezes
sempre à espera de ver alguma cair à água, felizmente, vi sempre as minhas
expectativas frustradas.
Estávamos agora a passar por debaixo das estruturas, do que viria a ser a
ponte do Tejo, tinha já os cabos de suspensão do tabuleiro lançados e podiam verse
os operários caminhar sobre eles agarrados ao sistema de segurança. Lembro-me
de ter pensado se voltaria a passar ali, com ela acabada.
Depois veio Belém, os clubes navais, o Sportivo de Pedrouços, onde na
minha infância tinha aprendido e praticado natação e mais tarde vela, no velho
snipe de madeira, o único que, embora fizesse água por todas as juntas, ainda
estava em condições de navegar. O Restelo, bairro onde eu tinha vivido até aquela
data, Algés a sua doca e praia de tantas e tão boas recordações. Foi lá que assisti ao
fabrico dos “caixões”, que serviram de base aos pilares da ponte Salazar,
rebaptizada mais tarde 25 de Abril.
Ao longe, entre o farol do Bugio e o forte de S. Julião, já se avistava a barra
do Tejo, quando fomos chamados para o almoço. Estávamos há muitas horas sem
comer, por isso abandonei o convés e as recordações e dirigi-me para a sala de
jantar.
Desci do comboio na estação de Tancos, comigo tinham descido mais meia
dúzia de mancebos, à nossa espera, segurando o guiador de uma bicicleta, estava
um primeiro-cabo já com alguma idade que nos disse para o seguirmos. Atrás dele
e da bicicleta, agora conduzida à mão, lá fomos estrada fora até à unidade que nos
tinha sido destinada. Escola Prática de Engenharia. Passei a porta de armas.
Estávamos no dia 11 de Agosto de 1963, o primeiro dos mil quatrocentos e
sessenta dias que vivi a vida militar.
Por ali fiquei na conversa com os outros, ouvindo e dizendo piadas para
disfarçar o nervosismo e passar o tempo, descobri entre os que ali se encontravam,
um ou dois colegas de escola, tinham chegado na véspera, mas do que nos esperava
não sabiam ainda nada, a não ser que a comida era má!
Com efeito, tive oportunidade de verificar isso, quando à hora do almoço, nos
foi servido um bacalhau com batatas, só soube que o era porque mo disseram, não
porque o tivesse reconhecido. De resto nem sequer o consegui comer.
Depois do almoço, foi-nos distribuída roupa de cama e indicada a caserna
onde iríamos dormir. O resto do dia por ali ficamos sem ter nada que fazer. À noite
jantamos e pouco depois tocou a recolher.
No dia seguinte, ao toque de alvorada, entrou na caserna aos gritos, um
segundo sargento com cara de mau, que nos pôs fora da cama, destapando-nos, ao
mesmo tempo que nos dirigia toda uma espécie de impropérios, ( mais tarde vim a
saber, serem parte de um vocabulário, muito usado na tropa. Vestimos à pressa a
nossa roupa civil e lá saímos para a parada, onde mais uma vez, o tal sargento aos
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berros nos obrigou a formar, aquilo como aprendi mais tarde, não era bem uma
formatura, era mais assim… um ajuntamento de pacóvios em três filas.
Tomado o café da manhã, lá voltamos à parada (era assim que se chamava o
grande espaço fronteiro aos edifícios do quartel) e mais uma vez, o tal sargento,
que depois soubemos ser o sargento de dia (muito embora, como pude constatar,
também gritasse muito bem de noite), da forma a que nos íamos já habituando, ou
seja, aos gritos, nos ordenou que formássemos. Após alguma balbúrdia lá o fizemos
de forma razoável. Após isto, mandou que o seguíssemos. Levou-nos então, até à
porta de uma arrecadação onde nos foi distribuído, pelo sargento, ia a dizer: pelo
colega do que nos acompanhava, mas depois lembrei-me “ que colegas são as
putas”, portanto, camarada daquele que ali nos trouxera. Dizia eu, que o tal
sargento ajudado pelos soldados que ali prestavam serviço, começaram então, a
distribuir o fardamento.
À medida que entrávamos, íamos percorrendo as prateleiras, que formavam
entre si corredores estreitos e compridos, cheias até ao tecto de roupa da tropa. Os
militares à medida que passávamos olhavam para nós e calculavam o número que
nos devia servir, tiravam as peças e colocavam-nas sobre os nossos braços. Quando
chegou a vez das botas arrisquei dizer que o meu número era o 42, o homem retirou
da prateleira dois pares dizendo: - Estas servem muito bem! Arrisquei repetir a
observação quando me entregaram as alparcatas, que são assim uma espécie de
ténis, mas foleiros, no entanto o resultado foi o mesmo. Saímos dali com o braçado
de roupa e fomos para a caserna, onde nos explicaram para que servia cada uma
daquelas peças de roupa e em que ocasiões deviam ser usadas. Depois disso,
despimos a roupa civil e vestimos o fato zuarte, este, era um fato-macaco como os
outros todos que eu tinha visto na vida, só que na tropa tinham título. Calçadas as
botas e colocado o bivaque sem abas e próprio dos recrutas, voltamos à parada e
começou a instrução.
Nos primeiros dias a instrução era básica, repetitiva e sobretudo muito chata,
aliás, chata foi sempre até ao fim.
Começamos por aprender a formar correctamente, ou seja, por alturas: os
homens mais baixos à frente e os mais altos atrás, depois aprendemos a fazer a
continência, operação repetida até à exaustão porque, afinal e contrariamente ao
que eu pensava, era uma coisa “ delicada” e compreende-se, porque se tratava da
saudação aos nossos superiores hierárquicos. E como para saudar os ditos cujos,
era obviamente necessário saber quem eram, aprendemos a conhecer os postos, não
só do exercito como também os da marinha (mais tarde vim a saber não serem da
marinha, mas sim de marinha que é certamente coisa bem diferente) os da aviação
eram, são, iguais aos do exército por conseguinte foram fáceis de memorizar, os de
marinha como têm os galões com argolinhas e além disso, em Tancos não havia
mar, apenas o rio Tejo, nunca mais me lembrei deles, o que, mais tarde me trouxe
amargos de boca.
A estes ensinamentos, seguiram-se outros que, para além de chatos, ainda por
cima eram bastante cansativos, tratava-se de aprender ordem unida. Ordem unida
era obedecermos todos ao mesmo tempo a determinada ordem, ora isto, dito assim,
parece não ser complicado mas enganam-se os que assim pensarem, pois isto é
coisa que requer grande esforço físico e intelectual. Vou dar um exemplo: - Á
ordem de esquerda rodar toda a formatura deve virar nessa direcção, sendo que são
os homens da frente que dão início à manobra, mas não! O que acontece é que se o
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primeiro homem da direita, vira para a esquerda o da esquerda, vira
invariavelmente à direita, ora o do centro não sabendo o que há-de fazer, segue em
frente. O resto da formatura, resolve então seguir o camarada com quem sente ter
mais afinidades, fica estabelecida a grande desordem unida. Nesta altura o
instrutor, que acha já ter envidado todos os esforços julgados para o efeito
convenientes, para fazer a formatura entrar na “ordem unida”, resolve então
começar aos berros a falar das nossas primas. Esta atitude, que aliás era extensível
a todos os outros instrutores, causou-me sempre grande perplexidade, como era
possível que todos eles conhecessem tão bem as nossas primas e ainda por cima
soubessem não só as suas características físicas mas também a profissão? Eu
calculava que isto se devesse, por uma de duas razões: - Ou por serem grandes
conhecedores de “primas” em geral e das suas em particular, ou então deitavam
cartas.
Dias depois a instrução começou a tornar-se mais complicada, à ordem
unida seguiram-se outras matérias, como a instrução individual do combatente,
organização do terreno, ginástica calistenia, ginástica de aplicação militar,
armamento e sobretudo uma matéria altamente complicada e para a qual era
preciso ter uma agudeza de espírito fora do vulgar, tratava-se do manejo de arma.
Do armamento que fomos estudando, sem dúvida que o mais importante era a
espingarda Mauser modelo 1937, calibre 7,9, isto porque esta arma além de poder
dar tiros, servia principalmente para fazer habilidades. Era aí que ela se tornava
realmente útil, é que, os exercícios de ordem unida, quando os militares se
encontram armados, implicam grandes conhecimentos de manejo de arma, que é o
nome que se dá a esta disciplina da ciência militar.
Assim, após termos aprendido a formar, marchar, rodar à esquerda e à direita,
marcar passo (significa que, se deve fazer de conta que anda, mas não se sai do
mesmo sítio) e ainda outras coisas de grande complexidade, como por exemplo:
olhar à esquerda e à direita, para saudar os superiores, (pode servir também para
ver quem passa) destroçar, posição de sentido, descansar, à vontade etc. De todas,
aquela que eu mais gostava, era sem dúvida alguma a ordem de destroçar, esta
sempre e até ao fim do meu serviço militar, a desempenhei com garbo, grande
sentido do dever e patriotismo!
Voltando à ordem unida com arma devo dizer que o instrutor voltou a ter
connosco grandes problemas de ordem pedagógica, pelo que começou de novo a
falar das nossas primas e por fim até das tias, como apesar disso, nós
continuássemos a não atinar com a matéria e nem mesmo com o material didáctico,
passou a aplicar aquele princípio militar, que se o recruta é burro castiga-se. Então
passamos a fazer flexões, saltos de canguru, correr à volta da parada com a arma
nas mãos e estas erguidas sobre a cabeça, ameaças de cortes nos fins-de-semana,
enfim, crueldades de toda a espécie.
Por fim e após, termos ao longo de vários dias, repetido até à exaustão os
mesmos movimentos, lá os fomos conseguindo fazer, sem ensarilhar a arma na do
camarada mais próximo, devo mesmo dizer-lhes que só não ficou ferido ou morto
nenhum recruta, porque as armas eram manejadas sem o sabre baioneta, que é uma
coisa que serve para a luta corpo a corpo, também tínhamos aulas de luta corpo a
corpo, mas isso era matéria que já havíamos dado na instrução primária.
Outra das coisas que aprendemos, foi a correr. Por mim julgava que o sabia,
mas estava redondamente enganado, eu até ali, pensava que correr era assim
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mais… para apanhar o eléctrico ou fugir do polícia que teimava em nos levar para a
esquadra, só porque jogávamos à bola no meio da rua, mas não, correr na tropa, é
coisa muito diferente, é uma experiência muito difícil de descrever, correr na tropa
é assim como um pesadelo que não acaba mais! É correr como nunca pensei ser
capaz de fazer, é fazê-lo até já não sabermos onde estamos nem quem somos, é
corrrrrrrer…! Muito tive eu que correr, ao longo desta vida que descrevo!
Também andei, andar como se faz na vida militar, é igualmente uma coisa
fora do comum, isso não sou capaz de descrever, durante todo o tempo que lá
passei, andei até ao fim do mundo!
No que diz respeito à ordem unida, e, quando julgávamos já ter sobre este
assunto, aprendido tudo o que havia para aprender, verificamos que não, que
faltavam as operações avançadas.
Eu sempre soube da existência do instrumento de sopro chamado corneta,
também sabia que era usado pelas forças armadas de todo o mundo, (e pelos
bombeiros), o 7º de cavalaria do exército dos Estados Unidos, usava e abusava da
corneta quando resolvia já quase no fim do filme, salvar a caravana do ataque dos
índios. Não foi pois, surpresa nenhuma, ouvir desde o primeiro dia em que ali
entrei, tocar o supra citado instrumento, evidentemente que ainda não sabia que
significado tinham as musicas, excepto aquela que ouvia tocar à porta da caserna
desde o primeiro dia, essa era “ a alvorada”, e servia para ajudar, o sargento de dia
a tirar da cama o pessoal, alias a horas muito pouco próprias. Também já sabia a do
recolher e a do silêncio, esta última era como o Lexotan, servia para dormir.
Ora, pelo que tive oportunidade de verificar, a corneta, que na Arma de
Cavalaria, se chama clarim, era um instrumento sem o qual as forças armadas não
poderiam existir, e senão, vejam: Como é que os soldados se deitariam? Se não
houvesse o toque de recolher, como se levantariam eles se não fosse o toque de
alvorada? E como poderia a malta deslocar-se, de um ponto para outro do
aquartelamento, se o corneteiro não tivesse corneta para tocar a formar? A tropa
toda morreria de fome certamente. Mas há ainda pior! Como atacar por exemplo, as
trincheiras inimigas, se não tocasse ao ataque? Como poderiam os soldados fugir
disciplinadamente do inimigo, se não tocasse a retirar? E pior ainda! Como
poderiam os militares saber que o comandante acabara de entrar na unidade, se não
tocasse a sentido? E o capote, como poderiam os militares protegerem-se do frio se
não tocasse a capotes. E o Escriturário de Dia? Como ir então ao hospital se não
tocasse a doentes? E todos os outros? E ainda mais?
Pois é verdade. Pelo que acabo de provar, sem corneta, nem clarim, não
haveria nem exército, nem aviação, não digo que não pudesse haver Marinha, pois
nessa arma para além de corneta, existe o apito, este é também, como é sabido, um
instrumento de sopro e como por diversas vezes observei, pode pôr em movimento
um vazo de guerra.
Julgo que estas explicações eram necessárias, para completa compreensão das
operações avançadas na disciplina de ordem unida. Pois como já devem ter
adivinhado, a corneta tinha nelas uma participação importante, diria mesmo, que
em determinadas circunstâncias era imprescindível. Assim, tivemos de aprender a
executar certas manobras, ao som dos toques deste instrumento. Foi durante essa
aprendizagem, que o malvado revelou o seu verdadeiro carácter. Estridentemente
altivo, prepotente, sibilante traiçoeiro, não respeitava sequer o seu tocador,
obrigando por vezes o pobre, a dar grandes fífias, ou então a não permitir que dele
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saísse som algum. Quando isto acontecia, o corneteiro, começava por ficar com as
veias do pescoço mais inchadas que habitualmente, as bochechas, essas
aumentavam até quase ao impossível e o rosto? Esse então tomava uma cor rubrovioleta,
após ter passado, primeiro, por várias cores e tons do espectro. Esta
situação era frequente, no entanto, deixava sempre toda a formatura em suspenso,
sempre à espera que as notas em vez de saírem por cima saíssem por baixo. Nestas
alturas, o gládio da formatura era manifesto e a irritação dos instrutores também.
Apesar de toda a malvadez do instrumento, lá fomos a pouco e pouco
aprendendo a obedecer-lhe. Firme, sentido, ombro arma, apresentar armas etc.
Verdade seja dita, que para que isso acontecesse, muito contribuíram os
sargentos instrutores, uma vez que a experiência adquirida, os ensinara, a não ser
aquilo música para os nossos ouvidos e que, assim sendo, era melhor para eles e
para nós, darem às escondidas (toda a gente na tropa conhece o truque) uma
ajudinha. Foram-nos então ensinando uns versos obscenos que, musicados pelos
toques, ajudavam a memorizar os inomináveis.
Na primeira semana não tínhamos ido a casa, pois segundo qualificadas
opiniões, não tínhamos ainda os conhecimentos que o permitissem, não sabíamos
reconhecer os galões nem as divisas, nem tão pouco fazer a continência, por isso
não fomos. No entanto podíamos sair do quartel e passear dentro do Polígono
militar de Tancos. Assim sendo, eu mais um outro camarada (colegas, são as putas,
seus parvalhões!), fardados com a farda adequada, calça de caqui, camisa do
mesmo tecido, gravata preta, blusão de mescla e bivaque sem abas com o emblema
da engenharia, um castelo. Depois de termos sido inspeccionados pelo Oficial de
Dia lá passamos a porta de armas e fomos passear. Durante o passeio encontrei um
amigo, também ele recruta, mas dos pára-quedistas, (o Regimento de Caçadores
Pára-Quedistas estava na altura sedeado na base de Tancos) por ali andamos até
que chegou a hora do almoço, perguntou-nos então, se queríamos almoçar com ele,
nós que tínhamos já vontade de mudar de ementa, perguntamos se lá onde ele
estava, a comida era boa? - Que sim, que era óptima, e podíamos acompanha-lo?
Claro! Ele falava com o oficial de dia, que era prática comum e como tal não havia
azar. Concordamos e encaminhamo-nos para a Base, chegados à porta de armas,
ficamos à espera enquanto ele entrava para falar com o Oficial de Dia. Entretanto
aproxima-se de nós um militar com uma farda muito elegante e onde brilhavam nos
ombros divisas douradas. Atrapalhados, com medo de que, caso lhe não fizéssemos
a continência, tal atitude fosse tida como pior, que lha fazer mal feita, pusemo-nos
em sentido, esticamos o braço, e desarrancamos a melhor saudação militar de que
fomos capazes. Para nossa vergonha, em vez de corresponder, o grande cabrão,
desatou a rir e a gozar à brava, entretanto o meu, “ já nosso”, amigo tinha-se
aproximado e de imediato compreendeu o que se tinha passado, e também ele rindo
à gargalhada nos fez saber que o tal militar, tinha apenas o posto de cabo, mas que
na força aérea os cabos especialistas tinham uma farda igual aos sargentos e
oficiais e que as divisas eram douradas e que nós não víamos boi e que etc. e tal, já
tinha autorização do Oficial de Dia para podermos almoçar na messe dos soldados
alunos pára-quedistas.
Nesse dia aprendi uma grande lição militar. A Força Aérea era o ramo das
forças armadas onde a luta de classes estava mais avançada. Os cabos eram iguais
aos sargentos e semelhantes aos oficiais. Além disso, nesta arma não existiam
recrutas, mas sim alunos, e além disso, não existe refeitório mas sim, MESSE e que
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nessa messe não se come bacalhau aldrabado, mas sim sopa de legumes e depois
bife com batatas fritas e ovo a cavalo.
Aprendi, também nesse mesmo dia, que no exército não se falta às refeições,
sem sofrer as consequências, sim, porque aquilo ali não é nenhuma balda.
A meio da tarde voltamos ao quartel e encaminhamo-nos para a caserna,
quando nos encontrávamos a meio da parada vimos o sargento de dia, que por sinal
era um furriel, vir ao nosso encontro:
- Então! Faltaram ao almoço!
- É verdade meu furriel, fomos almoçar com um amigo nosso ali à base.
-Ah sim…? Isso é muito giro, então vocês julgam que isto aqui é hotel? Vêm
quando querem e faltam quando muito bem entendem? Já vão ver o que lhes vai
acontecer.
Lá fomos com ele ver o que nos ia acontecer. E de facto, vimos. Vimos que já
tínhamos a nossa carreira militar estragada, pois o nosso furriel miliciano
encaminhou-se connosco para o gabinete do oficial de dia. Entramos, o oficial de
dia era um aspirante, também miliciano. Levantou-se da secretária dizendo:
-Com que então são estes?
-São sim meu aspirante, são eles mesmo.
-Ah! Os meus amigos (já não éramos camaradas, o caso devia mesmo ser
muito sério) baldaram-se à refeição! Não é verdade?
-Não sabíamos meu aspirante, não fazíamos ideia, como é Domingo…
pensamos…que …talvez.
-Não há talvez, vocês se não sabiam, perguntavam!
-Ò meu aspirante desculpe lá, não o fizemos conscientemente, não voltamos a
fazer isto.
-Não pode ser, o nosso comandante vai ter de tomar conhecimento disto, nós
aqui não estamos na escola. Eu não posso deixar passar, É um acto de indisciplina,
vocês vão ser castigados.
Eu pela minha parte, já só queria que pelo menos a pena fosse cumprida no
forte da Trafaria, sempre era perto de casa. A minha mãe só tinha de apanhar o
eléctrico para Belém e depois o barco. Podia trazer-me os cigarros e qualquer
coisinha para comer, além disso, eu sabia que o forte tinha umas frestas viradas a
norte podendo por isso, ver a minha casa.
No entanto o meu camarada, que não tinha ainda perdido a esperança,
continuava a implorar misericórdia. Ò meu aspirante, veja lá, estragar-nos a vida só
por causa disto, veja lá!
-Bem! – Diz o aspirante – atendendo a que vocês estão aqui há pouco tempo e
porque, aparentam não ser muito espertos, vou deixar passar sem participar, mas
não pensem que isto fica assim! O nosso furriel vai tratar de vos aplicar um castigo,
que lhes sirva de emenda, desapareçam!
O nosso furriel, que era, como depois percebemos, um grande malandro, todo
sorridente, mandou-nos segui-lo; à saída do gabinete, voltou-se para nós dizendo: -
vá lá que tiveram sorte! Eu hoje estou bem disposto, por isso o castigo vai ser leve.
Levou-nos então por uma porta que existia ao lado do gabinete do Oficial de Dia,
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onde entramos. Depois de subir um lance de escadas entrámos numa sala à direita
do corredor. A sala continha duas secretárias, e alguns armários de arquivo.
Mandou-nos sentar e em seguida distribuiu-nos um monte de fichas em cartolina
mais uns papéis escritos à máquina.
O resto da tarde, foi passada a copiar para as fichas os elementos que
constavam nas tais folhas, trabalho esse feito à mão com caneta de pau e aparo de
bico de pato. A malandrice do furriel não nos escapou e eu, por mim decorei a
lição. Mais tarde tive ocasião de aplicar este ensinamento com muito êxito.
Esquecia-me de vos dizer: Na tropa a caneta de pau munida de aparo de bico
de pato, pode eventualmente, servir para a luta corpo a corpo, não é no entanto
prática corrente.
A instrução continuava, mas agora muito mais sofisticada. Começamos a ter
aulas teóricas e práticas, de diversas matérias, tais como: Cartografia, isto é, a ler as
cartas militares, não confundir com levantamentos topográficos ou o desenho das
mesmas, isso era da competência dos Serviços Cartográficos do Exército. Pensei
muitas vezes na sorte que tivera, em não ter sido destinado a esse serviço, achava
que esses recrutas deviam ainda padecer mais do que nós. Imaginem só o que seria
ter de aprender a utilizar o teodolito! Isso era coisa para pelo menos duzentas
flexões e, por exemplo, ter de desenhar curvas de nível? Seguramente que ficaria
soldado básico ou, na melhor das hipóteses condutor hipo. Felizmente isso não
aconteceu.
Mas, voltando à instrução nocturna, aprendemos a orientar a carta pela
bússola, a localizar as duas Ursas, há uma maior e outra mais pequena, nesta última
podemos encontrar a estrela polar que é a estrela que (pelo menos nessa época) nos
indicava o Norte, enfim aprendemos montes de coisas, depois e para ver se
tínhamos efectivamente assimilado estes ensinamentos, começamos a ser
acordados de noite. Metiam-nos numa camioneta e depois de andarem connosco às
voltas, largavam-nos no campo e tínhamos de regressar ao quartel pelos nossos
próprios meios, usando para isso os conhecimentos adquiridos na instrução. Até
aqui não havia nada de extraordinário, eram exercícios normais necessários a uma
boa formação de futuros sargentos milicianos. O que eu achei verdadeiramente
invulgar, era a enorme confiança que os nossos superiores depositavam em nós,
como podiam eles ter a certeza do nosso regresso? E se nós munidos já nessa
altura, de tão vastos conhecimentos, orientássemos ursa menor, carta, bússola, os
pés e tudo, na confortável direcção das nossas casinhas?
Mas efectivamente, a confiança era merecida pois nunca tal aconteceu, e
passadas algumas horas, lá aparecíamos, esfalfados, mas aparecíamos. E, sob o
olhar irónico da sentinela, passávamos a porta de armas. Nunca ninguém se “
perdeu”.
Um dos instrutores que tínhamos era um aspirante miliciano mais velho que
nós 2 ou 3 anos, porque tinha ficado “esperado” afim de acabar uma licenciatura
em engenharia. O homem era uma excelente pessoa, educada connosco e muito
compreensiva. Era no entanto evidente que, tal como nós, não apreciava a vida
militar. Isso notei logo nos primeiros contactos que tivemos com ele.
A ordem do dia era lida na formatura do recolher e, era assim uma espécie de
cerimónia, ouvia-se a seguinte ordem: Companhiiiiiiia! Firme! Sennnt…hop! E em
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seguida o Oficial de Dia lia: Determino e mando publicar. Após isso, ordenava: -
Companhiiia! Descan…sssar! À-vontade.
Depois destes preliminares, era lida a Ordem do Dia. Finda a sua leitura e a
respectiva data, Quartel em Tancos etc. era ordenado: - Companhiiiia! - Firme!
Sennnt…hop! O Oficial após a companhia estar na posição ordenada, dizia: O
COMANDANTE… Já não me lembro do nome. Seguia-se a ordem de
descansar…à vontade
Durante toda a recruta, ou mais correctamente, a instrução do primeiro ciclo
do Curso de Sargentos Milicianos, os oficiais aproveitavam para, depois de lida a
ordem do dia, nos lerem também um Artigo ou dois do Regulamento de Disciplina
Militar. Numa dessas ocasiões, estando de serviço o engenheiro, quando acabou de
ler a Ordem do Dia, tira do bolso o livrinho do regulamento e diz-nos: Isto que vos
vou ler é o Regulamento de Disciplina Militar, basicamente o que aqui diz, é que
na tropa não se pode fazer nada sem incorrer em grave falta disciplinar. Este oficial
teve uma ocasião, uma atitude que revelou bem o carácter insubmisso e corajoso
que possuía.
Havia nesta Unidade um major. Este indivíduo era uma pessoa bizarra,
constavam dele histórias mirabolantes, também se dizia, que era um engenheiro
militar muito competente, mas não é dele que pretendo falar mas sim de um
rapazinho que por lá andava e que, segundo se dizia, era seu filho. O miúdo devia
ter uns 7 ou 8 anos, andava vestido como um verdadeiro soldado pronto, a farda
fora feita à sua medida, emprestando-lhe assim o aspecto de um militar à escala ½.
Ora o menino tinha um comportamento bem diferente daquele que era
permitido aos militares em tamanho natural, ou seja; o menino, filho ou protegido
do senhor major engenheiro, (julgo que era também segundo comandante da
E.P.E.) passeava-se alegremente pelo quartel, provocando toda a gente que tivesse
um posto inferior ao de major, espertalhão, sabia que podia fazer aquilo que lhe
apetecesse, porque toda a gente tinha medo do paizinho, pelo menos,
aparentemente a sua impunidade era total. O menino comportava-se como um
autêntico terror à escala ½, sendo mal querido de toda a gente. Um dos seus
entretenimentos, era falar muito amiúde das primas, tias, irmãs e mães de todos os
que tinham o azar de lhe passar ao pé, também gostava de atirar pedras e dar
pontapés; agora o que ele realmente adorava era passear-se pela frente das
formaturas embirrando com o graduado que na altura comandasse, isso sim, era o
máximo! Tinha palhaço e plateia. Em suma o menino era um espanto!... Não!... O
cabrão do puto era, mas era FILHO DE UMA GRANDE COLEGA!
Uma noite, na formatura do recolher, encontrando-se de serviço o aspirante
de quem vos falo, aparece o meio soldado e, todo pimpão, desata com os palavrões
do costume, a passar revista à companhia. Como o aspirante lhe tivesse gritado
“Desaparece daqui!” aquela peste, virando a atenção na direcção dele, resolve
acompanhar os seus dotes de orador com um valente pontapé na canela do Oficial,
este rodando o corpo à esquerda desfere com a mão direita uma valente chapada na
tromba do sacana do puto; dizendo-lhe: - Anda, vai fazer queixa ao teu pai e dizlhe
também que me estou cagando!
Não sei se chegou ou não a fazer queixa, sei que quando aquele Oficial se
encontrava connosco, o puto não aparecia, provavelmente o pai, tutor, ou fosse lá o
que fosse, achou melhor ignorar o assunto.
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Este oficial, aconselhou-me um dia a propósito não sei já de quê, a fazer
como ele, que se tinha oferecido voluntariamente para uma comissão de serviço em
Moçambique, logo após ter terminado o COM (Curso de Oficiais Milicianos).
Dizia-me ele que era melhor, pois o que nós tínhamos de mais certo era sermos
mobilizados, e como em Moçambique não havia guerra, se me oferecesse para lá,
era melhor do que ir para a Guiné ou Angola. Pelo que mais tarde verifiquei, tinha
toda a razão.
A instrução tornou-se cada dia mais dura, o campo de obstáculos era um
verdadeiro tormento, o pórtico, o galho, os saltos em comprimento sobre a vala de
água, os saltos em altura, em suma um não acabar de números circenses. Por si só
isto era para nós, rapazes com 20 anos, perfeitamente suportável, mas em conjunto
com a ginástica, os trabalhos de estrada, a ordem unida, as aulas práticas de
organização do terreno, aulas teóricas e, calculem vós! Canto coral!!! Tornava-se
um osso duro de roer.
O trabalho de estrada, bem como a organização do terreno merecem bem uma
palavrinha. O primeiro não se refere propriamente (muito embora nos
encontrássemos numa Escola de Engenharia) a terraplanagens das ditas ou ao seu
alcatroamento. Nada disso, tratava-se tão só e apenas, de fazer 16 km (por vezes
mais) andando ou correndo consoante os apetites do comandante do pelotão,
vestidos com o fato zuarte, botas e a tal Mauser em bandoleira. Felizmente a
espingarda Mauser mod. 1937 não ia munida de sabre baioneta, esta como sabem,
serve para a luta corpo a corpo e também para chatear a malta.
Quanto à organização do terreno, antes de explicar do que se trata, devo
primeiro dizer-vos que logo no início do curso, havíamos recebido um livrinho de
capa azul que se chamava «Manual do Oficial Miliciano» e comportava tudo aquilo
que, ele Oficial e nós, (embora às escondidas) devíamos saber para o bom exercício
da actividade.
Acontece que um dos capítulos era dedicado à tal matéria, descrevia tudo
aquilo que o autor achava possível e conveniente fazer em prejuízo do inimigo.
A saber:
- Cavar trincheiras, erguer parapeitos, construir abrigos de metralhadoras,
encher e colocar sacos de areia não sei já onde, mas creio que nas trincheiras,
abrigos e também às nossas costas. Também ensinava a fazer bricolage com arame
farpado, por exemplo: cavalos de frisa, concertinas (não me lembro se também era
possível fazer acordeões) etc. Todas estas coisas deviam ser colocadas à volta das
nossas posições de maneira a que o inimigo ficasse de tal forma ensarilhado nelas,
que não pudesse assaltar-nos.
O inimigo não nos poder assaltar era muito bom, mas…e então como
podíamos nós atacá-lo a ele, com aquela merda toda à frente? Isso para mim era um
grande mistério, mas resolvido a esclarecer o assunto, um dia enchi-me de
coragem, e expus o problema ao instrutor. Que não, isso era problema que não
existia, se caso fosse ordenado um ataque os obstáculos eram retirados e o ataque
poderia efectuar-se com toda a facilidade. Para que não restasse qualquer dúvida no
meu espírito, insisti em perguntar: Ó meu aspirante! - Mas nessas ocasiões,
certamente que o inimigo não retira os seus obstáculos, pois não? Não, seu
palerma, claro que não, para esses casos usa um método muito eficaz, que é o
seguinte: Primeiro a nossa artilharia faz fogos de preparação, à partida só por si são
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suficientes para destruir, não só os seus obstáculos, como também as trincheiras
além disso, devem matar ou pelo menos aterrorizar o inimigo de tal modo que o
assalto se torna mais fácil. – Ah! Assim está bem; respondi eu, assim já
compreendo.
Há ainda uma outra forma, esta mais expedita, de, em determinadas situações,
ultrapassar esse tipo de barreiras: - continuou o aspirante.
Os soldados que queiram passar um obstáculo, constituído por concertinas ou
filas paralelas de arame farpado, devem proceder do modo seguinte: - Um ou mais
soldados da linha da frente devem saltar sobre os arames assim dispostos, de
barriga para baixo, se saltarem de forma resoluta, não ficarão feridos. Depois disso,
os camaradas poderão passar rapidamente sobre eles sem receio de os maltratar.
Ultrapassado o obstáculo, os dois últimos homens, retiram o camarada preso no
arame, pegando-lhe um pelos pés e o outro pelos ombros. Devem então erguê-lo e
retirá-lo dessa posição.
Eu por mim, depois destes ensinamentos, não pude deixar de pensar, no que
aconteceria ao pobre do soldado, que pegaria nos pés do camarada deitado no
arame; mas então não ficaria ele do lado errado? E, assim sendo, que faria? Voltava
para a trincheira? – Cá para mim o melhor era não retirar o homem deitado, ele que
aguentasse, podia ser que fizesse jeito para servir de passadeira aos camaradas,
caso o ataque fracassasse.
O «Manual do Oficial Miliciano», continha entre estas e outras matérias,
algumas recomendações, uma delas, pela impressão que a sua leitura me causou,
devo aqui salientá-la. Recomendava-se o seguinte:
- OS SOLDADOS AO ATACAREM AS TRINCHEIRAS INIMIGAS
DEVEM SOLTAR GRITOS SELVAGENS, TAIS COMO: - VIVA A PATRIA!
Na minha opinião, o livro de capa azul não era nenhum manual de instrução,
era, isso sim, um romance cuja acção se passava durante a 1ª Guerra Mundial.
A par com estas matérias, recebíamos também aulas práticas e teóricas de
armamento.
Assim, para além da já quase nossa amiga Mauser, ficamos a conhecer as
seguintes armas:
Individuais - FN, FBP e UZI. Colectivas - METRALHADORAS
BROWNING, BREN , DREYSE, BORSIG e BREDA e também o LG 7,9, e os
MORTEIROS de 60mm, 81mm e 120mm.
Por motivos que adiante se entendem, julgo justificar-se uma breve nota
acerca do MORTEIRO:
Esta arma, constituída pelo tubo, prato, bipé (onde se encontra-se o sistema
de elevação e deslocação do tubo) e aparelho de pontaria, é sem dúvida uma
excelente arma tanto de defesa de posições como de ataque a posições inimigas. É
sobre o aparelho de pontaria que recai a complexidade da arma, aquilo era um
problema, se a memória me não falha era necessário determinar a distância ao alvo
através do telémetro, depois alinhar o tiro com umas réguas semelhantes às usadas
nos levantamentos topográficos e em seguida determinar o ângulo de elevação do
tubo após dois ou três disparos e sua observação, obtinha-se um tiro justo.
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Quanto às armas individuais, todas as que nos foram dadas a conhecer, desde
que estivessem munidas do tal instrumento perfurante serviam para a luta corpo a
corpo. Certamente compreenderão mais tarde, o porquê de eu sublinhar este
pormenor, mas posso desde já dizer-vos, que os motivos que me levam a faze-lo,
são justificados, pelos danos psíquicos que me foram causaram e dos quais ainda
hoje sofro e aguardo, pacientemente, mais que justa indemnização.
No que diz respeito à instrução individual do combatente, uma coisa havia de
tal importância, que para a podermos apreender de forma correcta e absoluta,
tivemos de a praticar até à exaustão. Tratava-se da progressão das patrulhas; havia
cinco formas de progredir no terreno: em Cunha, Losango, Linha, Coluna por Dois
e Bicha de Pirilau. Eu achei e ainda acho que também deveria haver uma forma de
regressão, mas isso não constava no manual. Também era coisa que não me afligia,
decidi que caso houvesse necessidade de regredir no terreno, fá-lo-ia a correr.
O que ia progredindo bastante era o tempo, e ao cabo de várias semanas, entre
instrução e testes de avaliação, aproximava-se a data da semana de campo, o Jornal
da Caserna já há muito que a vinha não só preconizando, como lançando sobre ela
os boatos mais infamantes.
A verdade é que um belo dia (e isto não é só figura de retórica, pois estava
mesmo um belo dia de Setembro) fomos mandados formar na parada, equipados
para sairmos para manobras. Ordenaram-nos que levássemos o pano de tenda e
uma muda de roupa na mochila e que colocássemos uma manta enrolada em volta
da mesma e presa com os francaletes que para esse fim lá se encontravam.
Colocados os arreios…? Já não me lembro se era assim que se chamavam as
correias que, ligadas ao cinturão, suspendiam todo o equipamento. Não será, que
arreios são para outro tipo de animais? Enfim isso agora não é importante.
Importante foi o facto de após ter colocado todo aquele equipamento, (era
equipamento usado pelos Ingleses na 2ª guerra) mais o capacete de aço e o sacana
do sabre baioneta, cantil bornal e mais não sei o quê, fui para a formatura já
cansado e foi cansado que fiquei o resto da semana.
A companhia de instrução, seguiu estrada fora não sei já em que direcção, o
mais certo era já na altura não o saber. Sei sim, que tirando a paragem para comer a
ração de combate, que nos tinha sido distribuída, caminhamos até ao anoitecer.
Jantamos comida quente fornecida pela cozinha atrelada que já se encontrava no
local escolhido para passar a noite, sendo depois disso dada ordem para que nos
deitássemos. Em virtude de ser já noite fechada, não foram dadas ordens de montar
as tendas, de modo que cada um de nós se desenrascou conforme pode. Eu e mais
dois camaradas do meu pelotão, introduzimo-nos sorrateiramente por debaixo da
lona de uma GMC ali estacionada e, apesar da chapa de ferro de que era feito o
improvisado leito, dormi até ao toque de alvorada.
No dia seguinte, depois do toque de Alvorada, veio a barafunda de procurar o
equipamento e voltar a colocar tudo nas sofredoras costas. Pá! Isto é meu, aquilo
não é teu, onde está o meu sabre baioneta? Falta-me o protector de boca, já te
orientaste com o meu, cabrão! Tinhas perdido o teu e agora achaste o meu? Eu seja
ceguinho!... Seguia-se o habitual chorrilho de palavras de escárnio e mal dizer.
Toque a formar, pequeno-almoço e estávamos de novo na estrada.
Nessa manhã a penosa caminhada levou-nos até à margem de um rio que pela
sua largura e força do caudal supus ser o Zêzere, no local onde parámos, já se
encontravam várias viaturas de transporte, bem como maquinaria pesada. Este
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material era operado por soldados prontos, da EPE de Tancos. Este pessoal,
comandado por oficiais e sargentos, trabalhava com grande rapidez e eficiência no
lançamento de uma ponte. Esta era constituída por várias barcaças que à medida
que eram lançadas ao rio se ligavam umas às outras por um processo muito
engenhoso (não fossem eles de engenharia).
Julguei que ficaríamos a descansar até aquela interessante obra estar pronta, o
que, para além de representar uma folga substantiva para pés, pernas e costas,
representava também, uma excelente oportunidade de dar os palpites que a nossa
santa ignorância certamente permitiria, eis que recebemos ordem para embarcar
nuns botes de borracha que ali apareceram, vindos não se sabe de onde. Tinha
acabado o descanso e as bocas. Entrei no bote que me tinham destinado e começou
a travessia, chegados à outra margem tivemos ainda oportunidade de poder ver uma
Bulldozer, que trabalhando a partir de uma espécie de batelão que a tinha
transportado, abria caminho na margem, desembarcando assim pelos seus próprios
meios e deixando feita a plataforma que iria receber a testa da ponte, que na outra
margem estavam a construir. Todos ficamos entusiasmados com a perícia do
operador, eu por mim pensei ser aquela a especialidade que gostaria de tirar, mas
não foi!
Como acontecera no dia anterior, marchamos em coluna de dois até à hora do
almoço, este foi servido pela cozinha atrelada que nos precedia, a comida era
servida da seguinte maneira: formada a companhia em bicha de pirilau, por ordem
de pelotões, aproximávamo-nos à vez dos caldeiros, onde o cozinheiro e os
ajudantes nos despejavam nas marmitas a comida. Estas eram constituídas por duas
peças rectangulares em alumínio, com uma pega numa das extremidades, a mais
funda era para a sopa e a outra para o conduto, o suporte do cantil servia de copo.
Cada um de nós recebia, além da sopa e do conduto um quarto de pão (era o
casqueiro) e um copo de vinho.
Depois de acabada a refeição voltamos à estrada e caminhamos até ao
entardecer, foi-nos então indicado o local onde deveríamos montar as tendas. Estas
eram constituídas por quatro panos, cada homem transportava um pano e dois
pauzinhos, os panos possuíam ao longo das bainhas, botões e casas, o que permitia
a sua ligação, Por sua vez, os paus tinham um sistema de encaixe que permita,
depois de ligados quatro, obter uma vara, com duas varas e quatro panos,
conseguia-se montar uma espécie de tenda rudimentar, que abrigava quatro
homens.
Uma vez acabada esta tarefa, jantamos e saimos de novo para executar
exercícios nocturnos. Sobre eles não vos posso dizer nada, porque nada percebi e
os que foram comigo também não, hoje penso que devia ser matéria qualificada
como secreta, pelo menos confidencial era.
Os dias que se seguiram, não têm grande história pois foram sempre iguais,
foram passados na prática de progressões no terreno, formação em Cunha, em
Losango, Linha etc. Cabe aqui explicar que eram formações que os exércitos dos
EUA tinham utilizado durante a 2ª Guerra Mundial, não sei se outros exércitos
também as tinham adoptado, no entanto o nosso usava-as. Durante a nossa
instrução tínhamos visto vários filmes, que entre outros ensinamentos, mostravam
patrulhas de soldados americanos a progredir desta forma, através dos campos de
França. A este propósito devo dizer-vos, que estes filmes demonstravam, como já
vos disse, o modo como proceder em várias situações. Uma delas no entanto, era a
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minha preferida; mostrava soldados americanos nas ilhas do Pacífico entrando em
povoações acabadas de conquistar aos japoneses e que, era suposto estarem
armadilhadas. (nós como sabem, encontrávamo-nos numa escola de engenharia
que, como se sabe, formava para além de outras especialidades, a de sapadores, era
natural que no ensino destas matérias fosse aplicada uma atenção especial) E, assim
sendo, eram nesses filmes dados exemplos do que se não devia fazer, sendo em
seguida mostrados os procedimentos correctos. Um desses filmes mostrava
militares no interior de uma casa abandonada, um deles reparava que um dos
quadros suspensos na parede, se encontrava torto, instintivamente tratava de o
endireitar, em consequência do acto irreflectido, comiam com a casa em cima, um
outro, mostrava em situação idêntica, um dos militares que vasculhavam, entrar na
casa de banho e olhando para a sanita, achou que tinha ali qualquer coisa para fazer
e assim fez, depois de o ter feito puxa o autoclismo e cai-lhe o tecto em cima.
Achei sempre muita piada a estas situações; para que haviam eles de mexer e usar
aquilo que não era deles? Mais tarde percebi que esta forma de procedimento, não
era descuido, era apenas a sua forma de estar no mundo.
Esta semana não teve realmente grande história, a não ser como disse, as
grandes caminhadas ao longo de todo o dia, também fizemos algumas durante a
noite.
Uma ocasião em que atravessávamos de noite uns vinhedos, aconteceu que o
homem do vértice da cunha, por falta de visibilidade, não viu que o terreno acabava
abruptamente e caiu de uma altura de cerca de três metros, sobre a estrada de
alcatrão que fazia estrema com o terreno; embora tenha sido de surpresa a queda
não teve grandes consequências a não ser algumas escoriações, provavelmente a
ginástica de aplicação militar, começava a dar os seus resultados.
Na véspera de regressar à unidade, soube finalmente qual tinha sido o
objectivo destes exercícios finais. Encontrando-me encostado a um talude que
marginava a estrada por onde nos deslocávamos, (normalmente em cada hora de
marcha devemos descansar 10 minutos) começaram a passar por nós, muitos
camiões carregados de tropa que nós não conhecíamos, de um desses carros, ouvi
alguém gritar o meu nome e para meu grande espanto vi, que quem me tinha
chamado era um amigo de infância, o Carlos Teixeira… não cabia em mim de
surpresa, mas então… que estava ele ali a fazer? Não tinha já embarcado?
Reparei então, que o carro onde ele seguia, se dirigia para um espaço livre no
pinhal à nossa direita, onde estacionou. Passados uns minutos aparece-me o
Teixeira.
- Ó pá então que fazes tu aqui?
- Não sei! - Respondi eu – ando aqui já quase há uma semana, mas o que
ando a fazer, não sei, acho que são os exercícios habituais do fim da recruta. E tu?
Pá! Julgava-te já em África, afinal que fazes tu aqui?
Explicou-me então, que o seu Batalhão estava em vésperas de embarcar para
Moçambique e que aqueles exercícios, eram o fim da especialidade dos soldados
mobilizados, uma vez acabados, entrariam de licença e após o seu gozo,
embarcariam.
Disse-me também, que nós estávamos ali porque representávamos o inimigo,
sem haver um inimigo não poderiam realizar os exercícios necessários à boa
preparação dos homens.
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Pronto! Estava tudo esclarecido. Sem me dar conta havia-me convertido em
inimigo do Carlos Teixeira. O caso no mínimo era misterioso, pois a última vez
que nos tínhamos visto, não o éramos, por sinal até nos havíamos despedido com
muita cordialidade, éramos amigos desde o tempo da escola secundária,
morávamos não só no mesmo bairro, como também na mesma rua, que se teria
passado então? – Certamente que tinha sido algum intriguista do serviços secretos
militares, o responsável pela aparente desavença, cá para mim não havia outra
explicação.
Esclarecido ficou também, que como inimigo eu era um fracasso, então ao
fim daquele tempo todo, não encontrara uma só vez que fosse o inimigo? Não tinha
entrado em combate, nem ao menos fora capaz de fazer um prisioneiro?
Pela primeira vez dei-me conta da minha incapacidade, era uma nódoa,
certamente nunca chegaria ao fim do curso e assim sendo, ficaria soldado básico,
uma vergonha, que diria o meu pai? E os meus irmãos? Certamente iria ser o
escárnio de todos aqueles que me conheciam, com que cara voltaria eu a aparecer à
frente dos amigos? Todos eles a cumprirem o Serviço Militar tal com eu, mas
certamente a saírem-se bem melhor. Bom, logo se veria, podia ser que pudesse ao
menos tirar a especialidade de condutor hipo, quem sabe? Eu sempre tinha gostado
de equídeos e carroças.
Com amargura vieram-me à memória, os conselhos que o meu pai me havia
dado, ao longo de toda a minha vida de mau estudante, dizia-me ele: - Quando é
que resolves pegar nos livros? – Se queres ser um homem tens de estudar! Agora
dava-lhe razão, mas agora era já tarde; devia ter dado mais atenção ao que ele me
dizia. Mas também como era possível estudar com aqueles livros? Como podia
uma criança dar atenção a uma maçada daquelas? Um horror! nem bonecos tinham
e os poucos que os tinham eram umas merdas sem piada nenhuma. Que graça tinha
ver uma circunferência dividida em seis? Nem que fosse em oito! E o desenho de
duas circunferências encostadinhas uma à outra que se chamavam tangentes?
Que graça tinham os desenhos dos triângulos? Havia um, a que chamavam
escaleno, que era a coisa mais torta que eu já vira desenhada, era preferível que
fosse escalado, como o bacalhau, esse também era em triângulo mas como tinha
um ângulo mais agudo que os outros dois chamavam-lhe isósceles, como era
possível exigir a um miúdo de 11 anos, que decorasse um nome daqueles? Também
lá havia o desenho de uma linha, com um ponto em cada extremidade, servia para
explicar que a distancia mais curta entre dois pontos è uma linha recta, isso estava
eu farto de saber, se calhar quando fugia à polícia era ás curvas! Isso e que era
bom! Atravessava os quintais dos vizinhos a direito que até ia na brasa.
Que interesse tinha, saber o peso do volume dum tal Arquimedes, que tinha
vivido na Grécia há uma data de anos? (acho que o gajo tinha uma banheira ou não
sei quê?) Eu sabia desde puto, que qualquer corpo distraidamente mergulhado no
líquido da doca de Algés, se não viesse à superfície ao cabo de dez minutos, tinha
que ser dado, como irremediavelmente perdido, não tinha sido isso que acontecera
à minha rica caninha de pesca em bambu sextavado? Ainda hoje, quando me
lembro dela, até as lágrimas me vêm aos olhos.
Que razão poderia eu ter, para me interessar por um Sujeito que não conhecia
de parte nenhuma, que segundo o que a minha professora de Português, a D. Dídia,
dizia, andava juntamente com o predicado e o complemento directo, a dividir as
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orações? – Ai andavam? Bem feita! Se eram aquelas que o padre de Religião e
Moral nos obrigava a dizer de seguida, até era bom que as dividissem!
Do livro de História, gostava mais, tinha mais bonecos e além disso aquilo
era porrada do princípio ao fim. Primeiro era um tipo chamado Viriato que dava
porrada nos romanos, depois eram os cristãos a fazer o mesmo aos sarracenos, os
de Castela, esses então levavam-na todos os dias, não escapavam nem aos
domingos e dias de feriado, parece que até os padeiros arreavam! Mais tarde, os
indianos começaram também a levar, aquilo sim, era um autêntico massacre. Sorte
tivera a França e Inglaterra, se calham a ter fronteiras com Portugal, hoje andavam
os putos deles a aprender quantos cantos têm os Lusíadas.
Em suma, se naquela época houvesse um curso de medicina em banda
desenhada, a estas horas eu seria Lente em Coimbra em vez de soldado miliciano
em Tancos.
- Eh, pá! Ainda aí estás ou já te foste embora?
Estas palavras do Carlos Teixeira trouxeram-me de novo ao local e realidade
do presente.
- Oh pá, desculpa estava aqui a pensar na morte da bezerra.
- Não queres vir ali comer um petisquinho comigo? – Pergunta-me – Eu sou o
Vagomestre do Batalhão e o cozinheiro está ali a fazer o almocinho para mim e
para os Vagomestres das Companhias, tu vens também!
Aproveitamos o tempo para conversar.
Decididamente o Carlos era mesmo meu inimigo, ele queria era a minha
desgraça, contei-lhe a aventura que vivera, da última vez que tivera a ideia
peregrina, de ir almoçar aos Pára-quedistas. Riu-se à brava, que não, ali estava ele,
e com ele, não havia azar nenhum, que nós íamos ficar ali uma data de tempo e de
resto se aquela tropa se pusesse em marcha, nós dávamos por isso e eu tinha mais
que tempo de os apanhar.
Desenfiei-me e lá fui com ele, afinal ele era já Cabo Miliciano e devia saber o
que estava a fazer.
Depois de bem almoçado, despedi-me dele e dos outros Cabos Milicianos,
(recordo-me que um deles, a quem davam o nome de Abas, era um gajo bastante
bizarro) regressei de novo à estrada onde ainda se encontravam os meus camaradas.
A semana de campo terminou no dia seguinte, cheguei ao quartel bastante
cansado e nem sequer feliz, parecia eu que estava a adivinhar chuva e realmente
chegou.
Chegou na semana seguinte, esta era a última da recruta e foi dedicada à
preparação da festa do Juramento de Bandeira, esta preparação consistia no treino
de diversas habilidades, que os vários grupos em que fomos divididos, iriam
praticar, afim de que os nossos familiares e amigos (era suposto que todos eles
viessem assistir) pudessem ver com os seus próprios olhos, em quão brilhantes
militares nos havíamos transformado. Eu fazia parte do grupo que iria saltar dos
carros em andamento, à medida que saltávamos, tomávamos posição deitados e
com a arma apontada aos espectadores do evento. (pelo que nos foi explicado, dada
a geografia do terreno e disposição de actores e espectadores, era o que se podia
depreender) Logo no primeiro dia de treino, depois de já ter saltado algumas vezes,
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o Aspirante manda saltar mais depressa, o condutor do veículo julgando que a
ordem era para ele, acelera o carro precisamente quando eu ia a saltar, em
consequência disso, o apoio fugiu-me debaixo dos pés, vou com a mão esquerda ao
chão e do chão para o Hospital Militar de Tomar.
Assim que lá cheguei, o médico mandou fazer-me um raio X ao pulso, viu-o
ainda molhado, não estava partido era apenas uma luxação ou coisa que o valha, fui
para a enfermaria, indicaram-me a cama em que iria ficar e em seguida lá fiquei
oito dias, à espera que o dito cujo médico me desse alta.
O Hospital funcionava no Convento de Cristo, segundo me disseram era
assim há já muitos anos. Estas instalações para além de obviamente, não terem sido
concebidas para este fim, (a sua construção data de 1160) encontravam-se num
estado miserável, as paredes apresentavam sinais de degradação evidente, as
pinturas que decoravam alguns dos tectos, estavam num estado deplorável, as salas
que serviam de enfermarias, eram frias e húmidas, as camas, iguais às usadas nas
casernas, eram feitas com lençóis que já tinham sido brancos no tempo do Mestre
Templário D. Gualdim Pais e o Cabo Miliciano enfermeiro, que prestava serviço na
enfermaria que me foi destinada, também dava sinais de degradação mental. A
comida não era má, era intragável! Enfim, o infeliz que ali entrasse com saúde, só
tinha alta quando se encontrasse doente! Pelo menos foi o meu caso, que de lá saí
bastante debilitado.
Durante todo o tempo que ali passei, quase não comi, tomava o pequenoalmoço,
constituído por café aguado e pão barrado com margarina e das outras
refeições aproveitava o pão, por vezes conseguia comer a sopa, mas era raro.
O médico que me tinha internado, não aparecia, o tempo não havia meio de
passar, todos os dias perguntava ao Cabo Miliciano quando é que ia ter alta, todos
os dias o homem respondia que isso não era com ele, até aí também eu era capaz de
discorrer, o que queria saber era apenas quando viria o médico, aquele ou outro
qualquer que pudesse mandar-me embora, a recruta estava prestes a acabar e eu ali
sujeito a perder o Juramento de Bandeira o que certamente implicaria regressar ao
princípio, na próxima incorporação.
Naquela enfermaria não se encontrava ninguém, verdadeiramente doente, a
maior parte deles estavam tal como eu, à espera de obter alta, havia um ou dois
casos de fracturas já tratadas e em vias de tirar o gesso e os que vieram depois de
mim também não me parecia que tivessem nada de grave; eram casos de manifesta
ronha. E assim sendo a paródia era mais que muita, não podendo sair, nem sequer
para ir ao pátio o nosso entretenimento, era contar as nossas histórias e pregar
partidas uns aos outros, a mais vulgar era a famosa “cama à espanhola” esta estava
já muito estafada e como tal não tinha grande piada, era inevitável o visado cair
nela, o gozo era a forma de reacção que cada um tinha, após verificar que tinha
saído na rifa, uma outra, esta apenas aplicada aos recém-chegados, era dizer-lhes
que sendo eles os doentes mais recentes, ficariam nessa noite de reforço. Claro que
ninguém acreditava, mas assim que era apanhado distraído, era-lhe colocada uma
vassoura por baixo do colchão, normalmente o indivíduo quando se deita não dá
por nada, mas no dia seguinte está com uma valente dor nas costas.
O nosso Cabo Miliciano é que não achava piada a nada, nem a si próprio,
cada vez que havia alguma brincadeira, logo vinha com a ameaça de participação,
de resto o homem parecia ter o Regulamento de Disciplina Militar na ponta da
língua, aliás só podia ser na ponta da língua, porque na cabeça não devia ter espaço
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para tal. Este traste de bata encardida tinha o costume de tirar a temperatura aos
“doentes” duas vezes por dia, numa dessas ocasiões, eu que já estava farto do
termómetro, encostei ao mercúrio a ponta do cigarro e voltei a coloca-lo quando a
escala Celsius atingiu os 40º. Quando o nosso Cabo miliciano veio recolher os
termómetros, ao verificar o meu, quase salta de surpresa, leva a mão à minha testa
desatando de imediato aos gritos, que aquilo desta vez não ficava assim, que ia
mesmo participar de mim, que com ele ninguém gozava, que eu ia ver o que dava
andar a brincar com a tropa, etc. Não sei se deu alguma coisa, no dia seguinte o
médico finalmente apareceu, deu-me alta meteram-me num carro e regressei à
Unidade.
Fui encontrar o quartel quase vazio, os meus camaradas tinham, como de
resto já sabia, Jurado bandeira, gozado licença e iniciado o segundo ciclo do CSM
nos locais para onde tinham sido destinados. Os que tinham ficado na unidade,
ainda não tinham regressado, nas mesmas condições que eu só encontrei um outro.
Apresentei-me na secretaria e entreguei a minha alta, inquirindo o primeirosargento
sobre a minha situação; disse-me que não havia problema, casos como o
meu estavam previstos no Regulamento. Fiquei a saber que a cerimónia de
Juramento podia ser feita a um só recruta desde que na presença de todos os
Oficiais da Unidade (em uniforme número um) e encontrando-se presente a
Bandeira Nacional.
Algum tempo depois, eu e o outro camarada, fomos mandados apresentar no
gabinete do Comandante, os senhores Oficiais, já se encontrava presentes, a
Bandeira Nacional estava colocada no seu mastro à direita da secretária do
Comandante. Um dos oficiais presentes, mandou-nos por em sentido, após isso
começou a ler os actos que devia-mos jurar, quando acabou de ler o primeiro,
respondemos: - Juro!
Quando a cerimónia acabou, mandaram-nos nos retirar, fizemos a
continência, meia volta volver e regressámos à secretaria.
O 1º sargento entregou-nos uma guia de Guia de Marcha. O meu 1º enganouse!
Enganei-me? Calcula tu! então eu enganei-me? Quem és tu para saberes que me
enganei? – Então ó meu 1º o Sr. está a mandar-me para Tavira e eu como sabe sou
de Engenharia, acho que é lapso da sua parte. – Ai é? Quem te disse a ti, que eras
de Engenharia? Tu por enquanto não és de coisa nenhuma! Nem és ninguém! Vais
para onde te mandarem e fazer o que for preciso, não tens voto na matéria,
desaparece-me da vista que já cá estás a mais; vai mas é apanhar o comboio senão
ainda o perdes e tens que estar em Tavira amanhã de manhã, apanhas o comboio
aqui na estação de Tancos, mudas no Entroncamento, apanhas a ligação para
Lisboa e depois tens de dar ao chinelo até à estação de Sul e Sueste e só tens meia
hora para o fazer, porque se o perderes só há outro amanhã às oito horas, portanto
toca a pirar ou sujeitas-te a levar uma porrada.
Eu não queria acreditar, então não ficava ali? Ainda insisti; mas porque é que
tenho de ir para Tavira? Então eu fiz sempre tudo aquilo que me mandaram! Mais
disciplinado do que eu era impossível! Foi por ter ido parar ao Hospital? – Não,
respondeu-me, foi por causa do raio que te parta!
Peguei na guia, fui buscar a mala e passei a Porta de Armas em direcção à
estação. Com que então aquilo na tropa era assim, um homem esforçava-se, corria,
trepava, aprendia a fazer um monte de coisas… se eu até a nomenclatura das armas
sabia, conhecia a Mauser melhor do que estas mãos que lhe pegavam, sabia até que
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se fosse munida de sabre baioneta serviria para a luta corpo a corpo e depois, como
paga de todo este esforço, diziam-me que me fosse embora? De cabeça baixa,
completamente deprimido, ofendido e ainda outras coisas terminadas da mesma
maneira, lá fui descendo a estrada a caminho da estação. Que grande porra!- Então
eu não servia para engenheiro? E o meu sonho de manobrar uma Bulldozer? – Saía
dali sem ao menos saber operar uma moto-enxada.
Absorto nestes e noutros pensamentos, lá segui até Lisboa. Quando o
comboio chegou a Santa Apolónia, desembarquei e segui para a estação Sul e
Sueste.
Esta estação não fica muito longe, mas, atendendo a que ia carregado com a
mala, os maus pensamentos, era já noite e a minha casa, ficava à distancia de uma
viagem de meia hora de eléctrico e além disso não tivera a licença que os outros
tinham tido, resolvi fazer agulha para lá e, se bem pensei, melhor o fiz, sendo para
lá mesmo que me dirigi. No dia seguinte, levantei-me cedo como o horário do
comboio exigia, despedi-me dos meus pais e segui para o Algarve.
Cheguei a Tavira já perto das duas horas da tarde, à saída da estação
perguntei o caminho para o quartel e para lá me dirigi. O caminho não foi longo, de
resto, naquela cidade não havia nenhum local que se situasse longe, como pouco
tempo depois verifiquei, longe eram os arredores, onde dos deslocávamos durante a
instrução.
Ao chegar à Porta de Armas, vi que me encontrava no CISMI Centro de
Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria, aquilo cá para mim era um acto de
traição, então depois de me terem andado não só a convencer que eu pertencia à
Arma de engenharia, como também me ter sido dada instrução com algum grau de
especificidade naquela ária, agora enviavam-me para ali? – Só se tinham sido os
testes Psicotécnicos que me tinham deixado mal… só podia ser isso! A culpa era
do meu intelecto, certamente que pessoas inteligentes, treinadas na avaliação de
homens, não se tinham enganado a meu respeito, decididamente não podia ser
engenheiro, as minhas capacidades não davam para conceber uma ponte (nem que
fosse daquelas pré-fabricadas) como a que eu vira instalar no rio Zêzere, muito
menos para sapador, isso então era impensável!... Iria certamente colocar vidas em
risco.
Lá me encaminhei para a secretaria, onde apresentei a guia de marcha ao
Primeiro-sargento, o homem baixou os olhos para o papel e levantou-os para mim
com expressão de quem está com azia, eu devolvi-lhe um olhar ingénuo de servil
humildade, ele continuou a olhar-me, mas já talvez… não sei, mas pelo esgar que
fez… Com um certo furor. Ouve lá! Achas que tenho cara de parvo? Por acaso até
achava, mas não tive lata de lho dizer, optei antes por um, não meu Primeiro! Pelo
contrário!
Pelo contrário? Já vais ver o que acontece a parvos como tu. Eu começava a
acreditar que esta classificação era já oficial e como tal, passível de registo na
Caderneta Militar. O nosso Primeiro continuou: - pensas que és muito vivo? Não
pensas? (Eu não só pensava como tinha a certeza, no entanto, pela disposição do
interlocutor, não sabia se por muito mais tempo) Mas estás muito enganado! Eu já
conheço esse truque, tu devias ter apanhado ontem o comboio das oito, mas não,
deves ter achado que ninguém dava pela tua manha, eu já vos conheço há muito
tempo, o que tu fizeste já foi feito por muitos espertos como tu, (em que é que
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ficava-mos, afinal eu era parvo ou esperto?) vais levar uma porrada que é para
aprenderes! Desanda daqui para fora, apresenta-te na 2ª Companhia.
Desandei dali para fora antes que o homem rebentasse de cólera e fui
pensando com os meus botões: 1º os Primeiros-sargentos chegam a este posto por
motivos de esperteza. 2º Porque possuem dotes de adivinhação. 3º Pela
inacreditável arte de memorizar horários de comboio e finalmente pela indubitável
capacidade de meter medo aos aprendizes de malandros. Certamente que nunca eu
teria competência para exercer um cargo tão difícil.
Se não me falha a memória, fiquei integrado n 4º pelotão da 2ª companhia.
Este pelotão era comandado pelo Aspirante Gil.
O nosso Aspirante Gil era um homem bem disposto, estava sempre a sorrir,
mesmo quando se chateava com a malta, o seu tom de voz raramente se alterava,
transmitia a impressão do tipo desenrascado, que tem sempre soluções para todas
as eventualidades. Essa postura garantiu-lhe a confiança e apreço de todos.
Eu apresentei-me e expliquei o porquê de ter ali chegado alguns dias após o
início do 2º ciclo do CSM. O Aspirante riu-se dizendo: - Você agora tem de andar
mais depressa que os seus camaradas para ver se os apanha!
No primeiro e segundo dia de ali me encontrar, senti-me bastante desasado,
além de não conhecer ninguém, ainda por cima a maioria dos camaradas do pelotão
já vinham do 1º ciclo, tendo como tal adquirido um certo espírito de corpo que eu
não sentia, nem podia sentir, isso é coisa que só se alcança com a vivência em
comum dos bons, e, sobre tudo dos maus momentos. Pouco depois acabei por me
aperceber que meia dúzia de rapazes tinham ali chegado (embora a horas) vindos
de outras Unidades e, como tal, se encontravam em situação idêntica, naturalmente
foi junto deles que eu obtive melhor acolhimento. Do pelotão faziam também parte
alguns cabos EPs e da Guarda Republicana, no entanto pela diferença de idade e
situação, não havia entre nós grande afinidade.
O Abel, era um dos que ali viera “ cair” vindo de outra Unidade, Foi com ele
que contactei com mais facilidade, era um tipo porreiro, simpático, ar de bom
vivant seria certamente o protótipo do Cabo Miliciano. Naquela época, dizia-se que
os Cabos Milicianos eram os “ maus filhos das boas famílias “ não acho que fosse
verdade, mas a sê-lo, então o Abel Renato de Freitas Xavier, enquadrava-se. Com
ele estabeleci uma amizade, que até hoje dura.
A disciplina no CISMI era bastante mais rigorosa ou talvez o fosse, apenas
porque em Tancos éramos recrutas e, como tal, tivéssemos direito a alguma
condescendência, não sei, sei que ali os instrutores não eram oriundos do Quadro
de Complemento, mas sim Oficiais formados na Academia Militar, como tal
habituados a uma disciplina mais exigente. Aliás naquela cidade até os civis eram
exigentes, como prova a cena trágico-cómica, que vivi, a primeira vez que saí do
quartel.
Foi no Sábado seguinte à minha chegada a Tavira, como não tinha ainda
estabelecido amizade com ninguém, fi-lo sozinho e com a intenção de conhecer a
cidade, encaminhei-me para o centro, quando cheguei ao largo da Câmara
Municipal vi o rio e, a atravessá-lo uma ponte, era a ponte romana do Gilão,
resolvido a ver o que havia na outra margem comecei a atravessa-la, mal dera dois
passos quando oiço um berro, Ouve lá!... Não sabes andar na ponte! O grito tinha
sido da boca de um cavalheiro plantado na minha frente. Atónito olhei para aquela
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figura surgida do nada, o cavalheiro aparentava ter uns sessenta e tal anos, vestia
com algum mau gosto, mais para o gordo que para o magro, olhava-me com uma
severidade, assim… mais a puxar para o rancor. Como não obteve resposta,
continuou: - Não sabes quem eu sou? - Sou o Capitão fulano de tal, os peões nesta
ponte andam pela esquerda! - Não sabias? – O meu espanto era tal, que continuei
sem lhe dar resposta, o homem devia ser trôpego da cabeça, só podia ser isso.
Como continuasse a não ter resposta e já com espuma nos cantos da boca, disparame:
- Dá-me o teu número e a companhia a que pertences, vou participar de ti,
além de atravessares a ponte pelo lado errado, ainda por cima não me fizeste a
saudação!
Claro que não só lhe não dei o número, como também lhe não dei resposta e
desviando-me do homem segui o meu caminho. Confesso no entanto, que após este
mau encontro, tinha perdido o apetite para o passeio turístico a que me havia
proposto.
Ainda fui até à outra margem, mas depressa regressei, e dirigi-me para o
quartel. Atravessei o jardim público, fui até ao mercado da cidade subindo então
por uma rua estreita, encaminhei-me para um campo aberto a que chamavam
Atalaia. Durante este percurso, fui pensando na minha triste sorte ainda mal tinham
passado três dias, e já recebera duas ameaças de porradas! Por aquele andar a
minha caderneta teria certamente de ter um qualquer anexo, ou o mais certo era não
caberem nela todos os castigos que eu já perspectivava.
Primeiro fora o Cabo miliciano, depois o Primeiro-sargento e agora um
Capitão (?) não era justo! Pelo menos eu não achava que o fosse. Ainda pensei que
se tratasse de alguns restos dos azares que me haviam perseguido, durante toda a
minha vida de estudante, mas achei pouco plausível. Não! – Aquilo devia ser obra
de alguma fada malfazeja. Então eu não me encontrava no Algarve? Toda a gente
sabe, que esta província foi durante a ocupação Árabe, palco de extraordinários
acontecimentos paranormais, ele eram princesas encantadas, príncipes enfeitiçados,
reis que perdiam os seus tronos, a propósito de ninharias sem qualquer fundamento,
enfim! Sabeis bem que isto é verdade, (aliás, ainda lá existiam algumas princesas,
que não sendo encantadas era tudo havia, encantadoras!) – Portanto devia ser isso o
que me acontecera, estava embruxado! E a ser assim…logo que chegasse ia ver o
que diria o Regulamento acerca de situações como esta.
Não vi o que dizia o regulamento, mas fiquei a saber o que o furriel, Sargento
de dia, pensava acerca deste acontecimento. Com efeito, mal acabara de entrar,
avistei o furriel a quem a braçadeira verde, indicava como estando de serviço,
contei-lhe o sucedido, rindo-se retorquiu-me: - Ó pá! Esse homem não faz mal a
uma mosca é muito boa pessoa, ele realmente foi Capitão e combateu na 1ª guerra
Mundial veio de lá além de surdo, com umas manias dessas, mas não te vai fazer
coisa nenhuma.
Mais tarde, por ocasião de uma cerimónia pública, tive oportunidade de o ver
no palanque onde se encontravam as forças vivas da cidade, vestia a velha farda
utilizada pelas forças expedicionárias Portuguesa em França e África.
Esta aventura, não impediu que mais tarde viesse a visitar e conhecer bastante
bem esta cidade de Tavira.
Segundo se conta, a sua conquista deveu-se ao facto de, em certo dia do ano
da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1242, sete cavaleiros cristãos, da Ordem
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de Santiago, aproveitando as tréguas que os próprios mouros tinham solicitado,
resolveram ir desfrutar o prazer da caça, com esse objectivo em mente e,
certamente munidos de dispensa de toque de Ordem, dirigiram-se para as portas da
cidade. Ao chegarem ao sítio das Antas, uma multidão de infiéis, provavelmente
por terem entendido ser tal acto, uma provocação, indo-se a eles logo ali os
mataram. O Mestre da Ordem, D. Payo Peres Correia, ao ser informado desta
ignominiosa traição, passou-se da tola, e largando a perna de cabrito que estava a
trinchar, manda tocar a formar e larga com as suas forças direito à cidade.
Os mouros, “ tadinhos,” não estavam certamente à espera que as represálias
fossem tão céleres, apanhados de surpresa e não tento tido tempo de se pirarem,
foram todos mortos, não escapou ninguém. Bem feita!
Pouco avisados andaram os infiéis, ao ignorarem o Espírito de Corpo que une
os militares. Com efeito um dos vários objectivos da instrução militar é que os
instruendos o adquiram, este, aliado à agressividade que advém, dessa mesma
instrução, leva a que os soldados vinguem os seus mortos.
Sobre este episódio da História, é, ao que julgo saber, o que consta, todavia
a minha experiência militar diz-me que o caso pode ter tido outros contornos:
- Á época, os cavaleiros de Santiago, encontravam-se aquartelados em
Cacela, localidade pouco distante de Tavira, os sete Cavaleiros para se deslocarem
ao sítio das Antas teriam certamente de atravessar a ponte, (a então vila de Tavira
não devia ir muito mais além das muralhas do castelo) ora pergunto a mim próprio;
- tê-lo-ão feito correctamente? – Terão eles circulado cuidadosamente pela
esquerda? – Ou pelo contrário, fizeram-no deliberada e provocatoriamente pelo
centro, ignorando as regras? – Se calhar passaram-na caracoleando os cavalos com
estes por sua vez, a largarem excrementos, sobre o romano (?) tabuleiro. Toda
gente sabe que os Árabes são gente educada e muito asseada, basta ver o filme
“Lawrence da Arábia”, para saber, que mesmo após atravessarem terríveis
tempestades de areia, as suas túnicas continuam reverberantes de imaculada
brancura, não admira pois, que a mourama não tenha podido ficar indiferente à
desfaçatez dos provocadores e, (quem sabe se não terão eles presenteado alguma
moura, com algumas daquelas piadas grosseiras, próprias de militares à solta) em
consequência disso aconteceu a desgraça que se sabe. Também é certo que Deus
escreve direito por linhas tortas, o terrível acontecimento, (certamente não
premeditado) acabou por ser benéfico ao reino, que, por sua causa, passou a
beneficiar de uma praça-forte importante, para a conquista do Algarve.
Fosse como fosse o certo é que, na capela-mor da igreja de Santa Maria,
fronte ao túmulo de D. Payo, pode ver-se encimando uma lápide com sete cruzes
de Santiago, a seguinte inscrição:
“Aqui jazem os ossos dos sete cavaleiros que faleceram na tomada desta
cidade aos mouros em 11 de Junho de 1242”.
Bem! Com estas toscas histórias da História, perdi-me, pareço aqueles
velejadores que se deixam ir com o vento, em vez de aproveitarem o vento para ir.
Eu estava a tentar dar as minhas impressões sobre a cidade de Tavira. A
cidade, na altura em que lá estive, era pobre! Mas via-se claramente que nem
sempre fora assim. Os seus palácios, casas aburguesadas e Igrejas, (julgo que são
vinte e três ou vinte e quatro) eram disso prova, mas agora notava-se que essa
prosperidade deixara de existir, os palácios estavam, se não ao abandono, pelo
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menos muito mal conservados, as casas “ricas” muitas delas encontravam-se ao
abandono, as igrejas, (algumas com pórticos que pelas suas arquivoltas e estilo de
rendilhado, me pareciam ser Manuelinos,) mostravam fachadas e outras paredes,
com a cal descascada pelo adiantado estado de salitração, em suma, a ostentação de
outrora, dera lugar à pobreza e à humildade das habitações e dos habitantes de hoje.
Mas apesar da situação se ter modificado, nem por isso a cidade deixava de ser
bonita, era-o sem sombra de dúvida, os seus telhados de tesouro, janelas
contornadas a pedra e as suas portas de reixa, conferiam originalidade e equilíbrio
ao conjunto urbano. As portas e persianas de reixa, são de construção requintada,
feitas de ripas com as aresta boleadas, só por si substituam bem, cortinas de renda,
deixam passar a luz, refrescam as casas e convidam à bisbilhotice da rua.
A ponte, é sem dúvida o seu Ex-Libris, alguns dizem que é romana, não
acredito muito nisso, os romanos eram arquitectos e engenheiros sérios, não faziam
pontes tortas e aquela é vesga, juro que é! Quem a atravessar vindo da margem
direita, repara certamente, que obliquo-a para a esquerda, primeiro sobe
ligeiramente, depois desce e vira à esquerda, porquê? Questão de política? Não sei,
a menos que fosse para me chatear, que a tentei desenhar várias vezes, até chegar à
conclusão que essa operação estava condenada ao malogro, a perspectiva mostravase
sempre aberrante. Se algum Mestre da arte visse aquilo, aconselhava-me
certamente a mudar de ofício.
Apesar de torta, de ser sítio de guerras e de ter no seu passadiço um capitão
que embirrou comigo, eu gosto dela, é tortuosamente linda, a inversão da sua
imagem nas águas do Gilão é um espectáculo digno de ser visto, é como aquelas
mulheres, que sem possuírem os cânones de beleza vulgarmente aceites, são lindas,
e, aquela ponte é linda todos os dias. É por baixo dela, que as águas do Séqua são
roubadas pelo Gilão, isto agora, analisado à distância, faz-me pensar, não ter tido o
Sr. Capitão razão alguma para me ter repreendido, senão vejamos:- Quem , vindo
da margem direita, atravessar a ponte pela esquerda, atravessa o rio Séqua, quem
pelo contrário o fizer no sentido inverso, também pela esquerda está a atravessar o
Gilão, assim sendo, atravessava-mos os dois o mesmo rio, a questão era essa eu
para atravessar o Gilão era obrigado a faze-lo pela direita, que tinha aquele Senhor
que me ralhar?
Agora a cidade, tanto quanto me foi possível observar, vivia essencialmente
da pesca, do sal e da agricultura. No seu porto as traineiras, enviadas e outras
embarcações de menor porte, bem como a existência no sapal do rato, do magnífico
edifício ao estilo “ Estado Novo “ da firma Arraial Ferreira Neto, empresa dedicada
à pesca do atum, as salinas que junto à Ria envolviam a cidade, bem como as
hortas e pomares, levavam a crer que assim fosse, pois não se viam sinais da
existência de outras industrias, o comércio era escasso para não dizer inexistente,
alguns (poucos) cafés e o cinema, pareciam ser os únicos divertimentos de carácter
permanente, isso do meu ponto de vista, era pouco relevante porque ainda que
houvessem divertimentos aos montes, eu não tinha dinheiro para os fruir, o que,
visto de uma óptica egoística até era bom, pelo menos não tinha mais nenhum
tormento a juntar aos que já me afligiam. De resto as minhas distracções nos
tempos livres, limitavam-se aos passeios pela cidade e por vezes, raras, à
alternância do rancho, com o bife com batatas fritas comido na tasca da margem
esquerda (dito assim fica melhor, faz lembrar Saint- Germaint des Près) em
companhia do Abel Renato; umas vezes eu pagava o meu, outras pagava ele os
dois.
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A única ocasião em que concedi a mim mesmo o benefício de outro
divertimento, a coisa teve de correr mal. Foi durante um fim-de-semana, meti
licença de recolher e juntamente com uns camaradas, que entre si tinham um quarto
alugado, dirigimo-nos lá, e, depois de nos termos vestido à civil, apanhamos a
camioneta para Vila Real de Santo António e fomos ao bailarico que havia ao
sábado à noite numa Sociedade de Recreio lá da terra. Ora toda a gente sabe, que
cada um tem a sua cruz e a minha por sinal era (ainda é?) bem pesada. Mal acabara
de entrar, não tive sequer tempo de ver se as moças eram boas ou más, o que vi foi
o furriel Jorge Tembe, pensei: estou feito! Agora é que é certo o Presídio Militar de
Elvas, lá vou eu saber afinal, quanto pesa o barril!
Felizmente o furriel Tembe era um gajo porreiríssimo, chamou-nos dizendo:
Pá! - O melhor é vocês darem à sola que estão cá dois Alferes lá do CISMI, eu por
mim não quero saber, mas os Alferes não podem fingir que não vos vêem, por isso
é o melhor que têm a fazer.
Como a noite estava estragada, o remédio foi apanhar a camioneta de volta,
vestir a fardinha e “regressar a quartéis”.
A título de curiosidade, este Furriel Jorge Tembe, veio a tornar-se mais tarde,
Ministro da Agricultura de Moçambique, de onde era Natural.
Na minha opinião, o quartel com os seus cerca de 2000 soldados milicianos,
devia também ele dar uma ajudinha na economia da Cidade, (felizmente para ela os
instruendos não eram todos tesos como eu) esta Unidade, não tinha sido instalada
com o objectivo de ser Unidade formadora de Sargentos Milicianos, a sua
construção foi ordenada no reinado de D. José, feita ao estilo pombalino, o seu
objectivo, (tanto quanto estou informado) foi a instalação do Governo Militar do
Algarve.
A nossa instrução no CISMI não era muito diferente daquela que eu já
conhecia, porém, era bastante mais dura. A ginástica de aplicação militar e o
campo de obstáculos eram exercícios de autêntico pesadelo e os trabalhos de
estrada eram desgastantes ao ponto de alguns de nós, ficarem de tal forma exaustos
que eram deixados pelo caminho.
Recordo-me de uma ocasião em que, o nosso Aspirante nos levou muito para
além do cemitério da Luz de Tavira; do quartel até à entrada dessa povoação e
voltar deviam ser cerca de 16 km, mas nesse dia passamos a saída da Vila
continuando a correr pela estrada de Olhão, aquilo nunca mais acabava, quando o
Aspirante se apercebia que o pelotão começava a fraquejar gritava: O trabalho de
estrada é lindo? Nós devíamos responder ……ÉÉÉÉ!!!!!! Se o grito não atingisse
os decibéis desejáveis, continuava a cantoria, naquelas circunstâncias correr era já
um tormento, gritar e correr era um inferno! - Nesse dia, eu que até ali nunca tinha
dado parte de fraco, tive de aceitar que no regresso, o Abel me levasse a
espingarda. Devolveu-ma apenas quando a minha expressão o tranquilizou.
Um obstáculo havia que era o terror de muitos instruendos; “o galho” era
constituído por uma prancha de madeira colocada uns três metros acima do chão, à
sua frente a cerca de meio metro, erguia-se um tronco de árvore, ao qual se tinham
desbastado todos os ramos excepto um, esse encontrava-se uns trinta ou quarenta
centímetros acima do máximo alcance das mãos do condenado, perdão, queria
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dizer instruendo! O exercício não tinha grande dificuldade, no entanto provocava,
tenho que reconhecer, um efeito psicológico, para alguns difíceis de ultrapassar.
Em Tavira, o campo de obstáculos encontrava-se no interior do Convento da
Graça, não tinha um grau de dificuldade muito elevado, encontrei mais tarde outros
mais difíceis, o Pórtico, esse estava instalado na parada do quartel, tratava-se de
uma construção em betão, constituída por vários pilares dispostos em rectângulo,
ligados entre si por uma viga que deveria ter cerca de 30 cm de largura, esta
construção estava erguida a alguns metros do chão, o objectivo dela, era fazer os
instruendos caminharem, correrem, etc. Estes exercícios eram bem mais perigosos
que saltar o galho.
A ginástica de aplicação militar praticava-se no campo da Atalaia, no entanto
instrutores havia que preferiam levar a rapaziada para as salinas, aqui, dentre outras
actividades giríssimas, a mais engraçada era sem dúvida nenhuma o acto de
rastejar. O aspirante gritava: - Rastejar até miiiim! E a malta tratava de o fazer. As
salinas onde esta divertida brincadeira se processava, há muito que estavam
abandonadas, e o lugar que noutros tempos tinham sido de uma brancura nívea,
era-o agora de um castanho de merda! O cheiro nauseabundo era difícil de
suportar, levando ao vómito e tornando ainda mais repulsiva esta tarefa.
Tal como em Tancos, a par dos exercícios físicos, iam sendo ministradas
aulas teóricas e praticas. Basicamente estas matérias eram a recapitulação, das que
havíamos recebido em Tancos, no entanto começavam a ser ensinadas algumas
técnicas de combate anti-gurrilha, principalmente as formas de montar emboscadas,
executar golpes de mão e batidas. Continuávamos também a receber instrução de
armamento, esta era principalmente dedicada ao armamento ligeiro utilizado pelo
Exército naquela época.
Nessa altura o governo tentava negociar a compra de material mais moderno
e compatível com a luta que se travava em Africa. Os movimentos de libertação
encontravam-se armados, com material mais moderno que o nosso, sendo pois
urgente substituir a velha espingarda Mauser de repetição, por uma arma
automática. Nesse sentido, tinham sido adquiridos alguns lotes de espingardas
automáticas, como a AR-10 Armalite, (utilizada pelos pára-quedistas) G3 e a FN.
Foi sobre as duas últimas, que mais incidiu a instrução.
Não quero enfastiar ninguém com lições de armamento, mas porque no
decorrer deste relato acontecimentos houveram que talvez o justifiquem, gostaria
de lhes deixar esta pequena explicação. Basicamente, o funcionamento de uma
arma automática obedece a este princípio; a expansão dos gazes, provocados pelo
detonar da munição, em vez de serem apenas aproveitados na projecção da bala,
como acontece com a arma de repetição, são parte deles usados para obrigar a
culatra a recuar, esta através de uma mola recuperadora regressa à sua posição
inicial levando à sua frente a munição que o carregador apresenta.
Assim sendo, a aprendizagem deste armamento, uma vez compreendido o seu
princípio, não era muito difícil, limitando-se depois a pormenores de diferenciação
mecânica.
Esta não era pois, uma matéria chata de aprender, antes pelo contrário eu até
gostava de me entreter a desmontar e voltar a colocar todas aquelas peças no
mesmo sítio.(nunca me faltaram ou sobraram peças, eu segui sempre o principio
militar, (“o material tem sempre razão”) Agora limpar as armas era um autêntico
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desespero! Então aquela que nos estava distribuída, aquela que munida… etc. e tal,
dava cabo das mãos, dos neurónios das dispensas do recolher, dos fins de semana e
de tudo, em contrapartida, ganhávamos guardas à “ Benfica” Faxinas ao WC e
outros prémios de igual grandeza. O pesadelo já vinha de Tancos, as armas eram
usadas de há vários anos, tinham passado as passinhas do Algarve e até de outras
Províncias, usadas por mãos pouco delicadas e em situações impróprias de tais
instrumentos, apresentavam já os canos picados, ora isto era um defeito impossível
de eliminar, os instrutores sabiam-no bem, nós também já o tínhamos descoberto o
cabo quarteleiro, esse conhecia o caso desde que fizera a sua própria recruta, o
senhor Capitão que me havia interpelado na ponte, devia-o saber desde o tempo em
que havia patinhado nas trincheiras de França…então por que seria que tínhamos
de ser nós, acabadinhos de chegar aquela vida, quem tinha agora de pagar as favas?
Aquele tormento assediava-nos mais aos Sábados de manhã, era a altura
critica, a malta a querer ir de fim-de-semana e o nosso Aspirante a olhar pelo
buraco do cano. Esta arma está um nojo, você não tem vergonha de vir para a
revista com a espingarda nesse estado? Apetecia-me dizer-lhe que não, que quem
deveria tê-la, era o sujeito que tivera lata de ma ter entregue naquele estado, mas
preferia titubear, meu Aspirante… eu já fiz tudo o que sei, limpei-a com petróleo
passei o escovilhão de aço mais de 100 vezes, usei os trapos pus óleo, voltei a
passar com o escovilhão…não sei o que hei-de fazer mais… Mas eu sei!- Responde
o Aspirante,-Vai fazer 20 flexões e em seguida vai limpar a arma!
Que grande porra! Aquela merda já não saía nem com óleo de fígado de
bacalhau, nem as receitas caseiras que a malta inventava, resolviam o problema!
Havia uma que se dizia na caserna, ser infalível, era passar uma prata dos maços de
cigarros através da ranhura da vareta e depois esfregar o cano até cheirar a alho;
isso é que era bom! Nem prata de chocolate Suísso, quanto mais de cigarros, só se
fosse de marca estrangeira, que das Nacionais, nunca obtive resultados.
Aprendemos também noções de tiro, tanto de armas individuais como
colectivas, havia uma arma que era bastante complicada de aprender, não a sua
nomenclatura ou funcionamento, mas sim a forma de a apontar com eficácia, era o
morteiro. Esta arma por ter sido a arma pesada mais utilizada na guerra de África,
merece talvez, uma breve explicação, trata-se de uma arma de tiro curvo, ou seja,
foi concebida essencialmente para bater ângulos mortos, como seja por exemplo:
uma força inimiga instalada por detrás de uma elevação do terreno. Existem três
calibres de morteiro, 60mm, 81mm e 120mm. Este último pode já ser considerado
como peça de artilharia. Esta arma é constituída pelo tubo, prato, bipé (aqui
encontra-se o sistema de elevação e deslocação do tubo) e aparelho de pontaria. É
sobre o aparelho de pontaria que recai a complexidade da arma, aquilo era um
problema, se a memória me não falha era necessário determinar a distância ao alvo
através do telémetro, depois alinhar o tiro com umas réguas semelhantes às usadas
nos levantamentos topográficos e em seguida determinar a direcção e o ângulo de
elevação do tubo, após dois ou três disparos, obtinha-se um tiro justo.
O conhecimento das armas implica obviamente o seu uso, nesse sentido,
deslocávamo-nos com alguma frequência à carreira de tiro. Eu já em Tancos tinha
tido instrução de tiro, no entanto aqui em Tavira essa instrução era mais intensa, de
resto a carreira de tiro era objectivo de frequentes marchas, não só para fazer fogo,
mas porque os instrutores pareciam gostar da paisagem. De facto ela não é feia,
mas isto digo-o hoje, porque naquela altura não achava piada nenhuma, a ter de
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marchar até lá de espingarda em bandoleira, debaixo do calor Algarvio que, apesar
da estação do Outono já ir adiantada, ainda se fazia sentir. A carreira de tiro ficava
num lugar chamado S. Marcos, para lá chegar passava-se a ponte Romana (?) e
virava-se à esquerda para a estrada do Cachopo, depois era seguir a margem
esquerda do rio, e continuar em frente, são cerca de 7 km.
O caminho não sendo longo, era apesar disso, fatigante e para tentar vencer o
cansaço e a sede, a tropa cantava.
À época ainda não tinham sido importados aqueles ritmos que estão hoje em
prática no nosso exército, por isso éramos obrigados a usar coisas menos marciais,
mas assim… mais brejeiras, que embora eu reconheça não terem tanta “pinta”
davam o alento de que necessitávamos. Lembro-me que uma dessas canções era
mais ou menos assim:
Ó Laurinda! Ó Laurinda! Não vale a pena chorar
Ó Laurinda! Ó Laurinda! Não vale a pena chorar
Tu sabias ò Laurinda, que eu ia p´ra Militar
Tu sabias ò Laurinda, que eu ia p´ra Militar.
Que eu ia p’ra Militar, que eu ia p’ró Regimento
Que eu ia p’ra Militar, que eu ia p’ró Regimento
Ó Laurinda Ó Laurinda, não me sais do pensamento
Ó Laurinda Ó Laurinda, não me sais do pensamento
Não me sais do pensamento, não me sais do coração
Não me sais do pensamento, não me sais do coração
Ó Laurinda Ó Laurinda, hei-de ir pedir tua mão
Ó Laurinda Ó Laurinda, hei-de ir pedir tua mão
Hei-de pedir tua mão, da meia-noite p´ra uma
Hei-de pedir tua mão, da meia-noite p´ra uma
Ó Laurinda Ó Laurinda, não tens vergonha nenhuma
Ó Laurinda Ó Laurinda, não tens vergonha nenhuma
No dia do casamento, vai haver um bailarico
No dia do casamento, vai haver um bailarico
Que até debaixo da cama, há-de bailar o penico
Que até debaixo da cama, há-de bailar o penico
Enfim! Canções do Povo, que o Povo levava à Tropa.
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Certo dia o nosso instrutor Gil, apareceu com galões de Alferes, tinha sido
promovido, não só ele, como todos os outros, percebia-se que na noite anterior
tinha havido festa e da grande! - O homem vinha animado, nós ficamos contentes
pela sua promoção.
Devo aqui esclarecer, que tenho usado a expressão instrutores a todos
aqueles que nos instruíam, no entanto, instrutores eram os Oficiais, os Sargentos
eram apenas monitores, ou seja, coadjuvavam os Oficiais nessa tarefa, embora
houvesse matérias que apenas os sargentos ensinassem, como tal os Oficiais não
estavam presentes. Realmente eu compreendia, não sei se aquilo que penso sobre
este assunto tem algum fundamento, mas a prática que o serviço me ensinou,
levou-me a pensar que havia necessidade de afastar os Oficiais das tarefas menos
simpáticas, o método era interessante – O nosso Capitão é um gajo porreiro, agora
o nosso Primeiro… hui! – Que grande sacana! Dava jeito. Também não deixa de
ser verdade, que não estou a ver, um Alferes a ensinar canto Coral a menos que
fosse oriundo do Quadro do Serviço Geral.
A verdade é que, até aquela altura, (sobre tudo noutras) também eu embirrava
com os Sargentos, pudera, aquilo era só dificuldades e conversa de chatice…mais
tarde aprendi, que na tropa, como em todos os lados, há gente embirrante tal como
gente simpática e ainda …os outros.
Fiquem no entanto cientes, que os Sargentos são como a corneta sem eles não
existiriam Forças Armadas; nem mesmo a Marinha subsistiria – Quem toca o apito
são os Sargentos!
Mas voltando à carreira de tiro, lembro-me de certo dia, logo pela manhã
seguimos para lá afim de fazermos tiro, quando estava-mos sensivelmente a meio
do caminho, surgiu um táxi a grande velocidade. Travou ruidosamente a traz da
formatura e de lá saiu sorridente, de pistola-metralhadora Uzi na mão, o Furriel
monitor do nosso pelotão. O caso, no mínimo era caricato não sei se o Alferes deu
pela coisa, mas se deu, fez de conta que não deu, o homem sempre a sorrir com ar
matreiro integrou-se na formatura e lá seguiu connosco. Tinha havido noitada.
Uma vez lá chegados, tomamos por grupos, lugar nas posições de tiro. Tendo
sido do primeiro grupo a fazer fogo, tive de aguardar que todo o pessoal fizesse o
mesmo, e, como a ocasião faz o ladrão, resolvi aproveitar o tempo de espera, para
me dedicar à prática do desporto favorito da rapaziada que para ali ia. Se pensam
que era o tiro, estão enganados, era o assalto aos laranjais que ali se encontravam,
mesmo á mão de semear, ora já havia eu roubado e comido umas duas ou três
laranjas, o camarada que tinha aceite (diga-se de passagem com agrado) participar
do furto, teria consumido quantidade idêntica, eis se não quando, surge o
proprietário da fruta desata a gritar entra na carreira de tiro e dirigindo-se, ao
alferes apresenta as suas razões, estas eram para aí 5 ou 6. O alferes, todos os
Alferes, Tenentes, Capitães, em suma todos os Militares do CISMI, sabiam dos
habituais gamanços, inclusive o Comandante, que todos os anos pagava das verbas
do quartel, a vitamina C dos seus comandados, ainda hoje penso que o único
cliente daquelas laranjas, era tão só e apenas o quartel.
O nosso Alferes Gil não se deu por achado, como tal, achei que a coisa, por
ser já prática comum, iria ficar esquecida, enganei-me:
Ao fim da tarde regressamos ao quartel, quando passamos a porta de armas o
Alferes chamo-me, a mim e ao outro. Então? As laranjas eram boas? Estávamos
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apanhados! Isso era uma evidência; - meu Alferes, foi só uma! - Ah! Isso não
chegou para nada, por isso vão voltar à carreira de tiro e apanhar outra!
E para não tentarem o truque, de ficarem a fazer horas aqui a dois passos,
quando lá chegarem, vão ter com o nosso cabo, responsável pela carreira e dizemlhe
que vão da minha parte, ele tem lá um papel escrito por mim, tragam-mo!
Lá voltamos a S. Marcos, desta vez fizemo-lo pelo caminho da margem
direita, que passando pelo sítio dos Moinhos da Rocha vai sair quase à entrada da
carreira. Não optamos por este caminho por ser mais perto, mas porque dois
soldados de espingarda em bandoleira, caminhando pelas ruas da cidade, só podiam
estar a cumprir castigo, isso a população estava cansada de saber, ora o caminho de
que falo evita a passagem da ponte assim ficávamos menos expostos aos olhares
trocistas de quem passava, lá fomos pois “ cumprir promessa” e se assim era,
aproveitámos para gamar algumas romãs, como estas tinham um gosta sensaborão,
voltamos às laranjas. E assim entre romãs e laranjas, lá fomos percorrendo os 7
km.
Uma vez lá chegados, procuramos o cabo, dissemos ao que ia-mos, o homem
rindo muito, disse-nos que não tinha papel nenhum, que éramos uns nabos por ter
caído no truque. Este homem vivia com a sua família numa das casas da carreira de
tiro, já devia ter uns 50 anos, dizia-se que de lá não queria sair, pudera tinha casa e
luz à borla e a ser verdade o que se dizia, safava-se com a venda do chumbo e latão
que lá apanhava.
Cabisbaixos, voltamos por onde havíamos vindo, nesse dia não roubamos
mais laranjas, mas prometemos a nós mesmos, vaze-lo na primeira oportunidade;
não a tivemos. Nesse ano a região foi açulada por chuvas torrenciais, o rio correu
em grandes enchentes e com ele corriam aos milhares, as laranjas. Diz-se e é
verdade, que a mesma água não passa duas vezes por debaixo da mesma ponte, as
laranjas também não!
A instrução deste 2º ciclo, ia já perto do segundo mês, quando a minha
companhia recebeu mais um instruendo. Este chegava bem mais atrasado do que
eu, o motivo, nunca o cheguei a saber, mas devia ser interessante; o homem trazia
com ele um ar de “sou muito esperto,” de seu apelido Monteiro, se me não falha a
memória, de Mafra, trazia a mala repleta de “ habilidades.”Cada vez que a dita se
abria saíam algumas a última que de lá escapou, foi muita linda, ao que constou, foi
a que se segue:
- Tendo ido de fim-de-semana a casa no regresso, vestiu-se com uma farda de
oficial onde brilhavam nas mangas, os galões de Capitão, alugou um carro, e
regressou a Tavira. Até aí já não estava nada mal! Mas acabou por ficar melhor, já
perto de Tavira como a gasolina se tivesse acabado, parou numa bomba de
combustível, e mandou encher, depois pediu desculpa ao homem porque afinal se
tinha esquecido da carteira, mas não havia azar! Era Capitão ali no CISMI, logo
passaria a pagar.
Como não passou, passou o pobre do homem pelo CISMI, aih! aih! Que fui
roubado, quem foi? Quem não foi? - Foi o Monteiro! Albergado na prisão do
quartel, lá ficou. Quando o curso acabou, regressaram todos a suas casas, excepto
este rapaz, passou lá o Natal? Não sei!- Sei que ficou lá e o Natal estava à porta.
Ainda tive, por estar de Guarda à Polícia, de o levar ao WC, no caminho
disse-me que não era preciso espingarda, eu não fujo! Respondi-lhe – pois não!
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Conto esta história, porque este homem se tornou célebre, sob o nome de
Capitão Roby.
Certo dia, já perto do fim do curso, depois do almoço e quando a digestão e o
cansasso convidam à sesta, à desatenção e ao aborrecimento, apareceu um Alferes
que ninguém conhecia. Vinha acompanhado de três ou quatro homens que
transportavam uma arma que nós nunca tínhamos visto, era o canhão sem recuo
75mm. Começou a explicar a nomenclatura, funcionamento da arma e para que
servia. (isso nós calculávamos que servia para matar os filhos da puta dos inimigos,
estava fácil de ver!) Lá foi pois dizendo, que a arma tinha 24 estrias (há barrigas
que têm mais) que a granada também era estriada ajustando o projéctil à alma do
cano, a culatra tinha janelas, afim de que, os gazes ao saírem por essas aberturas
pudessem manter o equilíbrio da arma, ou seja; era este sistema que permitia que o
canhão não tivesse o habitual recuo do cano, foi dizendo que quando a peça era
disparada provocava, tal como a bazuca, um cone de gazes de alta temperatura,
capaz de matar quem se encontra-se à retaguarda, também nos disse que o mesmo
tipo de arma, mas de calibre 106mm. Era apontado ao objectivo, por meio de uma
metralhadora carregada com bala tracejante. Esta arma era montada num jeep,
embora possuísse um tripé, que permitia que fosse usada de outra forma. O Alferes
afirmou ainda que se copo de água, fosse colocado sobre o cano, não se entornaria
com o disparo. Em suma um autentico fenómeno, eu achei tão extraordinária esta
capacidade de equilíbrio que perguntei ao Alferes se não podíamos “dar um
tirinho”, que não, não podíamos, mas eu podia desde logo começar a fazer 15 saltos
de canguru, cumprido o castigo, e como o Sr. Instrutor teimava em repetir, até há
exaustão, aquilo que já havia dito, dada a curta distancia a que estávamos do
refeitório, resolvi desenfiar-me, e ir até lá, só para ver o que seria o jantar. Os
pelotões quando em instrução costumavam formar em U, ficando o instrutor no
meio, bem como, se fosse caso disso, o objecto de instrução. Por conseguinte… as
perguntas do U, mais o material objecto das nossas atenções, provocavam alguma
dispersão do nosso novo Alferes, especialista em armas pesadas. Se a isso
juntarmos o facto do homem não nos conhecer, estavam reunidas as condições
ideais, para o desinfianço. Espreitando pois a oportunidade, assim que a vejo, lá
vou eu refeitório dentro.
Direitinho à cozinha, vi que os cozinheiros e faxinas estavam a abrir latas de
conserva de cavala… batatas cozidas com cavala, não era mau! Pedi uma, comi e
voltei ao U. Só que o Sr. Alferes, topou e de imediato afirmando, disse: - Você
deve saber já tudo sobre esta arma, não é verdade? Sim meu Alferes, sei tudo
aquilo Vª Senhoria nos ensinou. (Senhoria é o tratamento a que os Oficiais até ao
Posto de Tenente têm direito, a partir dele o tratamento passa a ser V.ª Ex.ª) Então
diga aos seus camaradas, tudo aquilo que eu acabo de ensinar. (ainda bem que já
acabara de ensinar, se não ainda hoje o estávamos a ouvir) Assim fiz, recitei a lição
tim tim, por tim tim, não resistindo no fim a dizer: - esta arma, se munida de sabre
baioneta serve para a luta corpo a corpo. Não servia para a luta corpo a corpo,
servia isso sim, para ficar com as dispensas de recolher cortadas durante cinco dias.
Em compensação, ganhei também, dois reforços à Benfica.
Esta alegre vida de Militar, foi assim progredindo, entre a instrução teórica,
idas a S. Marcos, não só fazer fogo, como assistir a demonstrações de fogo de
morteiro, (numa dessas demonstrações vi disparar os morteiros com granadas de
fumo, diziam que era assim que se criavam condições, para se poderem executar a
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coberto destes, ataques ao inimigo) bazuca etc., marchas, campo de obstáculos,
visitas às salinas, enfim tudo aquilo que tenho tentado descrever.
E, assim progredindo, aproximava-se do fim. Tal como em Tancos, a última
etapa, era a semana de campo.
Quando esta chegou, há muito que o Outono ia avançado, frio e chuva,
tinham tomado conta do tempo. E foi com estas condições atmosféricas, que
saimos do quartel para iniciarmos o seu primeiro dia.
Quando da minha chegada ao CISMI, tinha encontrado um antigo
companheiro da Escola António Arroio, o Vidal. Embora pertencêssemos a
Companhias diferentes, encontrávamo-nos por vezes na parada, e trocávamos
conversa, dias antes da nossa partida para o campo, tínhamos estado numa dessas
cavaqueiras; ele estava com um ar diferente, e, só passados alguns instantes me
apercebi, ser a falta dos óculos a causadora desta alteração de expressão. Mas não
só, o moral parecia ter tocado no fundo. Contou-me que tinha partido os óculos,
assim talvez não tivesse de ir para o campo… não via nada sem eles. Estava farto
daquilo, não conseguia adaptar-se aquela vida; tinha tido conhecimento de uma
nova especialidade militar, a cinotécnica, tinha-se oferecido para a tirar: Sei que
todo este tempo vai ser perdido, disse-me, mas acho que prefiro ir tratar dos
cãezinhos, a ser atirador de infantaria.
No dia da saída para o campo, vi-o. Ia nas traseiras de uma camioneta de
apoio. Voltei a vê-lo em Julho ou Agosto do ano de 1967. Parei o carro nos sinais
de S. João do Estoril, ao meu lado parou outro carro, ao volante o Vidal. Pergunteilhe:-
Então pá! Que fazes agora? - Estou na tropa… como de costume! Ambos
rimos. O Vidal praticou este alegre serviço Militar, durante cinco longos anos.
Durante toda esta semana, choveu! … Choveu e choveu! Depois voltou a
chover, em seguida: Tornou a chover e por fim, depois de tanta chuva, veio o
dilúvio.
Aos nossos queixumes, instrutores e monitores respondiam: - El-Rei manda
marchar, não manda chover!
Durante toda aquela semana, percorremos a serra do Caldeirão. Atravessamos
aldeias, descemos vales e subimos montes, em algumas das aldeias, as mulheres
olhavam-nos por de traz das janelas, algumas vinham à porta para nos ver passar e
muitas (as mais idosas) choravam, provavelmente por lhes fazermos lembrar,
algum filho ou neto, em iguais ou piores circunstancias. Não sei se as suas lágrimas
ajudavam ou não a aumentar o caudal das águas nas valetas, sei que a água,
formava regatos de um e outro lado do alcatrão.
As refeições, eram-nos servidas à chuva, não havia maneira de o evitar. A
cozinha atrelada, precedia-nos, parando no local previamente escolhido, armavam
uma espécie de toldo e cozinhavam a refeição. Quando chegávamos, formávamos
em bicha de pirilau, um após outro, recebíamos a sopa na marmita mais funda e o
prato na mais baixa, no copo do cantil a ração de vinho, em suma: tudo aquilo que
a organização Militar entendia ser nosso direito e capaz de servir a manutenção da
saúde física e mental, permitindo com isso uma constante e eficaz, exposição dos
seus militares à chuva, que, fraternamente, nos aconchegava o corpo e aguava a
sopa.
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O termo desta semana de instrução de campo, estava previsto para sexta-feira,
mas na noite de quarta para quinta-feira deu-se, ò horror dos horrores! Uma
sublevação das tropas.
Não sei se lhe hei-de chamar sublevação, ou insurreição armada. Os termos
da guerra subversiva, já me haviam transtornado os neurónios, sei apenas que o
causador de tão inusitada e abominável acção…fui eu!
- Nessa noite, como de costume, após a refeição, deitamo-nos. Também como
de costume, devido ao cansaço adormecemos. De madrugada, acordei
sobressaltado, com o intenso barulho da chuva a bater nos panos da tenda, apoiei as
mãos no chão para soerguer o corpo. Ao faze-lo a mão esquerda enfiou-se na água
submergindo o meu recém-adquirido “cauny-prima”, acordei os camaradas
gritando: - Acordem que isto está tudo inundado! – Aceso um isqueiro, verificou-se
que o que tinha acontecido fora apenas eu ter, ao erguer-me, introduzido a mão
dentro da marmita da sopa, que por azar, tinha deixado debaixo de uma pingueira
da tenda.
Começou então a grande paródia e os dixotes mais ou menos ofensivos: -
Olha! grande parvo! – Não sabes nadar? – Se fosses para aqui, se fosses para acolá!
– Este grande cabrão…etc.
Não apreciando por ali além, os gozos de que estava a ser alvo, julgando o
meu rico relógio perdido, como acontecera à minha rica caninha de bambu
sextavado, impiedosamente afogada na doca de Algés, (quando falo nisto até as
lágrimas me vêm aos olhos) peguei na Mauser, e, como felizmente não estava
naquela altura, munida de sabre baioneta, disparei a bala simulada que introduzi na
câmara. A resposta a tão vil e desajustado acto, não se fez esperar; o “colega” ao
meu lado, fez o mesmo, a estes dois tiros, seguiram-se outros vindos da tenda ao
lado, em poucos segundos soavam disparos por todo o acampamento. Os gritos dos
oficiais e sargentos, que entretanto acordados pelos tiros, procuravam fazer calar o
fogo, mal se ouviam, por outro lado e embora a escuridão fosse total, as armas
disparadas dentro das tendas, não permitiam ver a chama, impedindo assim a
localização dos disparos.
Aos poucos os tiros foram sendo mais espaçados, até que por fim, se instalou
de novo o silêncio.
Na manhã seguinte, o povo na tropa, aguardou calmamente as certas, cruéis e
justas represálias; nada aconteceu porém. A refeição matinal foi servida, o
acampamento levantado, a tropa voltou à estrada, a chuva continuou a cair e…ò
surpresa das surpresas! – A Companhia regressou a Tavira! O regresso dava-se um
dia mais cedo, que teria acontecido? – Acaso, agora na tropa, um acto de
insubordinação, em lugar de ser castigado, tinha prémio? – Que diria, lá onde quer
se encontra-se, Sua Excelência o Senhor Conde de Leepe? Com toda a certeza
pensava, em Alemão, já se vê: - Andei eu a organizar este exército, a conceber um
RDM “à maneira a estes gajos,” para agora ter de assistir a esta enormidade.
Há medida que a companhia se aproximava da Cidade, as nuvens começaram
a diluir-se, acabando por dar lugar a um Sol, que embora pálido, se ria abertamente
para nós.
Não sei se para lhe agradecer, lá à frente o Açoriano, começou a cantar: - Ó
Laurinda! Ó Laurinda! Não vale a pena chorar…e o resto da Companhia
respondeu: - Tu sabias ó Laurinda, que eu ia p´ra militar…
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Espero que este meu acto irreflectido, causador (não tenho dúvida nenhuma)
da rebelião de 1963, tenha prescrito; se assim não for, que ao menos seja tida em
conta, a sua confissão espontânea e voluntária.
A instrução encontrava-se no fim, apenas faltavam as últimas provas físicas,
foi-nos dito, que estas eram importantíssimas, para a obtenção de uma boa
classificação. Esta, no dizer de alguns, podia ser decisiva no futuro que nos
aguardava. Com efeito, para os militares do mesmo ano e posto, a antiguidade é
contada de acordo com a nota que cada um obtém. E como se sabe, a antiguidade
na tropa é um posto.
Dizia-se mesmo que quem tivesse conseguido obter, uma nota elevada não
chegaria a ser mobilizado. Esta afirmação não deixava de fazer sentido, uma vez
que a mobilização era feita segundo critérios de antiguidade. E, por assim ser, ou
por assim se julgar que era, todos estávamos interessadas, em que as proas físicas
finais, nos corressem da melhor forma possível.
Eu, até ali e muito embora tivesse, desde muito novo, praticado desporto,
nunca tinha levado este muito a sério. Fazia-o mesmo por desporto e não com
objectivos competitivos. Por esse motivo nunca me tinha distinguido por feitos de
ginasta, nem por esses, nem por outros quaisquer. Diria…que numa classificação
de 0 a 20, estaria aí pelos12. O Abel, por exemplo, não! Era bastante mais
dedicado, julgo mesmo que o era, por tudo aquilo que se propunha fazer. Além
disso, tinha o espírito daqueles que não gostam de perder “nem a feijões”!
Chegado o dia das tais provas, a minha companhia lá se dirigiu ao Convento
da Graça, as provas, essas não tinham grande graça, já eram do nosso
conhecimento, agora a diferença, é que estas iam ser cronometradas.
As provas começaram e desde logo vi, que não seria fácil para mim fazer um
tempo muito bom. A principal dificuldade, consistia na última etapa. Primeiro,
vinha o salto em altura depois seguia-se o salto da vala, que se encontrava cheia de
água das recentes chuvas, depois era a ponte interrompida, subida da corda etc. Por
fim já na ponta final, era necessário rastejar por debaixo de perto de vinte metros
de arame farpado e logo de seguida pegar num saco com 20 quilos de areia, pólo ao
ombro e correr com ele até à meta.
Alguns, que aparentavam ser bem constituídos e resistentes, quando
chegavam ao saco de areia e tentavam erguê-lo, tombavam sobre ele, depois ao
tentar de novo perdiam imenso tempo, dai ter compreendido, ser ali que iria estar a
minha maior dificuldade.
Estabeleci então a minha estratégia, alias muito simples, mas que
curiosamente não vi ser aplicada por mais ninguém.
O amigo Abel fez uma prova muito boa, conseguindo um tempo bem acima
da média. Quando chegou a minha vez, parti em velocidade moderada preparandome
para o “saco”, depois já próximo do arame acelerei, quando cheguei ao arame
atirei-me para o chão e rastejei, outra vez moderadamente, quando tentei levantar o
maldito trambolho, verifiquei que a chuva, que entretanto voltara a cair, o tinha
tornado bastante mais pesado. Foi então que, não sei se por estarmos em local
“Sagrado,”aconteceu se não um milagre, pelo menos uma coisa invulgar. Alguém
me ajudava a levantar e colocar ao ombro aquele obstáculo à minha glória. Nem
olhei sequer para o lado, arranquei para a meta e terminei a prova. O Alferes
cronometrista, leu o tempo, eu, regressei ao meu lugar. O Abel, que também ele,
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(como certamente o Alferes) não tinha dado pelo insólito, olho-me boquiaberto,
limitei-me a sorrir com ar superior. Tinha feito menos três segundos que ele.
Chegou o fim do curso e com ele, o dia da nossa partida, eu regressava a
Lisboa com 15 dias de licença de Natal, a especialidade de Atirador de Infantaria,
uma nota bastante elevada e uma guia de marcha, para o Batalhão de Caçadores 5,
Unidade que a minha classificação, me permitiu escolher.
Os primeiros a partir, foram os camaradas que seguiam para localidades
situadas para cima da cidade de Lisboa, apanharam o comboio da noite, os outros,
os que iam para Lisboa, ou ficavam antes dela, partiriam no comboio da manhã.
Em consequência disto, tive nessa noite oportunidade de me reconciliar com
o Pepe. Poucos dias após a minha chegada a Tavira, por causas que já há muito
esqueci, cheguei a vias de facto com este ” Sadino” depois desse incidente as
relações ficaram cortadas.
Nessa noite, o sargento de dia, reuniu o pessoal e deixou o aviso:
- Quero que saibam, que os “ palhaços “ do curso anterior ao vosso, antes de
embarcarem partiram esta merda toda! Assim, esta noite passarei por aqui as vezes
que achar convenientes, todo aquele, ou aqueles que causarem estragos, verão a
licença cancelada, pagarão o que de algum modo tenham destruído e levaram a
“porrada” que o Nosso Comandante entender! – Podem destroçar!
Regressados à caserna, começou desde logo a grande tourada. Eu nunca,
quando as batalhas de travesseiros tinham inicio, participava nelas; mas naquele dia
quando vi uma torre de camas que chegava ao tecto, ser erguida e lá de cima dois
dos recém formados atiradores, atirarem sobre mim os travesseiros de que estavam
municiados, não resisti e tomando balanço, atirei o meu primeiro travesseiro
militar.
A nossa primeira “vez,” leva-nos quase sempre, a fazer tudo à pressa e de
forma atabalhoada, talvez por isso, o travesseiro mal apontado e atirado de forma
precipitada, atingiu um alvo “colateral” neste caso a lampadazinha florescente, que
lá do tecto dava luz à minha falta de discernimento: - Bem feito! – Pensei, agora
vais passar o Natal com o soldado Monteiro!
Mas isso não aconteceu, o Pepe, desembaraçado, correu para o balneário e
trazendo com ele a vassoura e a pá, varreu os cacos e esconde-os numa das caixas,
que serviam para arrumar a nossa tralha, empurrada para debaixo de uma cama lá
ficou com a prova do meu hediondo crime. Agradeci-lhe o gesto e pedi desculpa do
havido, ainda perguntei: - E se o gajo olha para o tecto? De facto no local onde
tinha estado a lâmpada a obscuridade era notória - não há azar! – Dizemos que está
assim há muito tempo.
No dia seguinte, fomos para a estação do caminho-de-ferro, pelo caminho fui
recordando tudo aquilo que deixava para traz:
- As caminhadas, A Atalaia, (rastejar até mim!) aquele furriel, que quando de
serviço, vinha inspeccionar a forma como as camas se encontravam feitas, (lançava
uma moeda para cima da colcha, se fizesse cova, desmanchava-a e tinha que ser
feita de novo) o alferes que me mandara fazer a barba três vezes, até achar que me
podia deixar sair, aquele Tenente, que quando de Oficial de dia, nos arrancava os
botões, que no seu entender, estavam mal cosidos, as guardas, os reforços à
Benfica, faxinas de castigo e sem o serem etc.…
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Comigo levava, para além da mala, com os parcos haveres, alguns
ensinamentos úteis, alguns deles vieram a servir-me ao longo da vida: - Nunca
menosprezar o valor do inimigo, (inimigo, pode ser substituído por adversário ou
concorrente) não dar ordens, que não tenhamos meios para fazer cumprir, mesmo o
plano mais simples, torna-se difícil de executar no terreno, (aqui podemos
substituir por, na prática) só para dar alguns exemplos.
Ah! Já agora, também vos digo, que trazia esclarecido o motivo da existência
da Ordem Unida, que tanto nos havia desgastado.
A Ordem Unida é indispensável nas Forças Armadas, não só no garante da
ordem na vida interna das Unidades militares, como para manter o espírito de
coesão e disciplina, imprescindível na vida militar.
Apesar de todos estes e outros ensinamentos, não podia fazer um balanço
positivo, da minha estadia em Tavira. Naquela altura não podia. Acabava de passar
demasiado tempo longe da família e dos amigos, não estava habituado. Na verdade,
durante o tempo que ali passei, não fui uma única vez a casa, não tive nunca
condições de o fazer.
Se a este desconforto, se juntar a dureza da instrução, alguma solidão e falta
de distracções, que pudessem amenizar aquela minha sensação de desterro, então
estavam reunidas as condições, para ter pensado antes de entrar na estação:
- Não volto mais a esta cidade.
Realmente, estive trinta e tal anos sem lá voltar. A estrada nº 125, que a
atravessava, passou a contorna-la, assim, mesmo quando a caminho de Vila Real de
Santo António, nunca tive nem vontade, nem necessidade de o fazer.
Hoje, à porta da estação do comboio, a escultura de um soldado miliciano,
despede-se de uma rapariga, que na rotunda lhe retribui.
Sei disto porque ao cabo de todos estes anos, comprei lá casa, por sinal à
beira do rio Séqua, a dois passos da ponte que atravessa dois rios.
O Batalhão de Caçadores 5, estava instalado, no que fora outrora um antigo
Colégio dos Jesuítas. Este imenso e imponente edifício, ficava sobranceiro à rua de
Campolide.
Foi lá que me apresentei, após ter gozado a tão desejada, licença de Natal.
Apresentada a Guia de Marcha, fui colocado na 2ª Companhia Operacional.
Lá, fui já encontrar, alguns camaradas, que como eu, ali vinham prestar
serviço. Apresentei-me ao 1º Sargento Silva, este recebeu-me com muita simpatia e
explicou-nos então, o protocolo a observar naquelas circunstâncias: Devería-mos,
vestindo o uniforme nº 1 e com o sabre baioneta colocado no cinturão,
apresentarmo-nos a todos os Oficiais da Companhia, além disso, teríamos de tratar
de substituir a diagonal de soldado Miliciano, que ainda ostentávamos no ombro,
pelas divisas de cabo-miliciano. Também as armas de infantaria, colocadas tanto
no bivaque como nas bandas do blusão, deveriam ser trocadas pelas armas de
Caçadores, uma trompa de caça.
Não estava mal, na tropa, há apenas cerca de seis meses e era já a terceira vez
que mudava as armas. Primeiro o castelo de engenharia, depois as espingardas de
infantaria e agora as trompas de caça dos caçadores, que muito embora fossem
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infantes, deviam ser especializados na caça. Mas caça a quê? – isso ninguém me
disse e eu também não perguntei. Não devia valia a pena, até acabar o meu serviço,
ainda era capaz de ser mandado para a tal de Marinha.
Compradas as divisas (de cor verde, que é a cor própria de quem anda à caça)
e as tais trompas, levantado o sabre baioneta, fomo-nos apresentar aos oficiais da
Companhia, como era da praxe. O Comandante era o Tenente Cavaleiro, o seu
nome, não tinha nada que ver com a arma de Cavalaria, era só mesmo o seu
apelido.
Depois do Comandante seguiram-se os outros Oficiais, destes apenas um
pertencia há muito à Companhia, era o Alferes Miliciano, Araújo, aliás Araújo
“Calmeirão,” pelo menos era assim que lhe chamava-mos na Escola António
Arroio, onde fôramos colegas, (atenção, que neste caso éramos mesmo colegas, só
na tropa, “colegas são as putas,” seus parvalhões!) era conhecido por “calmeirão,”
para não ser confundido com o outro Araújo, que era de estatura moderada. O
Alferes Araújo, por ser o Oficial mais graduado, na ausência do Tenente,
comandava interinamente.
Os outros Oficiais eram Aspirantes Milicianos, da mesma Incorporação que
nós, e, como nós, ali colocados.
Depois de apresentados, ficamos a saber, que estávamos ali afim de dar
instrução de Atiradores, a uma companhia de corneteiros (?). É verdade! – Esta
companhia, estava ali, para efeitos de instrução, adida à 2ª Companhia Operacional,
assim, da parte da manhã iriam ter instrução de atiradores e de tarde…Musica! –
Bem feita! Lá estava eu, que julgava ter deixado em definitivo, de correr, saltar,
marchar, fazer ginástica de aplicação militar etc. de novo metido naquilo!
Então era assim? – Não chegava aquilo porque tinha passado? – Agora tinha
de passar também, pelas coisas que os outros, e só eles, (era a minha modesta, mas
interiorizada, opinião) deviam passar? – Aquilo não devia ser assim, eles que
fossem aprender por conta própria! – Afinal era só de manhã, bem podiam arranjar
um resumozinho do curso de atiradores, sentavam-se sossegadinhos e estudavam.
Quanto muito, admitia, que alguns de nós, à vez, está visto; pudessem estar
presentes…assim só… para manter a disciplina.
Ninguém quis ouvir a minha opinião, mas ainda hoje penso, que deveria ter
sido avaliada, por alguém que possuísse as qualificações, para o efeito desejáveis.
O Batalhão de Caçadores nº 5, era uma Unidade interessante. Não sei bem se
algum dia a conseguirei definir, dizia-se que era da confiança do Governo, eu por
mim, achava que se o tal Governo a conhece-se, não lhe atribuiria grande
confiança, e porquê? – Perguntareis vós, porque em boa verdade a orgânica
daquela Unidade, era um bocado invulgar. Os batalhões, costumam ser constituídos
por quatro companhias, três de atiradores e uma de comando e serviços. O de
Caçadores nº 5 não era assim constituído, tinha duas Companhias Operacionais,
uma companhia de corneteiros em fase de instrução e uma outra de transmissões.
Esta última, arrumada no último andar, do corpo principal do edifício, quase se não
dava pela sua existência. Os soldados prontos, das duas companhias operacionais,
não se viam em lado nenhum, ou nunca tinham existido, ou então tinham passado à
“peluda” e ninguém havia dado por isso.
Por outro lado, o Batalhão possuía uma banda de música só para si! – A isto
eu chamava egoísmo. Só podia ser isso, também podia ser mania das grandezas,
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mas não, devia ser mesmo egoísmo. Então não lhe chegavam meia dúzia de
corneteiros, que também tocassem caixa? Podia, como é evidente tratar-se não de
egoísmo, não de mania das grandezas, mas tão só, dum exacerbado gosto pela
música, mas não, repito: - era egoísmo? Se fosse gosto musical, porque é que
quando a banda tocava toda a gente fugia a sete pés?
Já para não falar da escola de corneteiros, isso então nem queiram saber!
Depois do almoço, os aprendizes de corneteiros, era levados pelos sargentos da
música, para os locais mais recônditos do quartel, mas apesar deste expediente, a
malta fugia, e, de tal maneira, que eu por exemplo fugia para casa.
O batalhão também tinha um pombal, nele aquartelavam-se centenas de
pombos-correios, vim a saber que pertenciam às transmissões; também lá haviam
centenas e centenas de ratos e ratazanas, de meter medo aos mais audazes. Estes
animais, não sei a que arma pertenciam, mas pelos buracos que por todo o lado
faziam, deviam ser sapadores de engenharia.
Além de todos estes animais, a Agro-Pecuária, existente no quartel, tinha sete
ou oito porcos, tinham também mulas e machos, alfaces, couves, nabos, (era o que
havia lá mais) cenouras e tudo o mais, que consoante a época, a terra dava.
Vejam bem, onde eu que sempre apreciei o sossego, tinha ido parar. Um
horror! – A banda passava o dia a ensaiar, o corneteiro de serviço, tocava a toda a
hora, os instruendos, daquele instrumento, da parte da tarde, os pombos
arrulhavam, os porcos refucilavam e grunhiam, as mulas e os machos zurravam e
faziam outros ruídos, que não sabendo eu, exactamente o que eram, não deviam ser
coisa que se visse, os sargentos gritavam ordens por todo o lado, no parque-auto, o
ruído dos motores a ser afinados, ou desafinados, era insuportável. Por isso depois
do almoço “pirava-me”.
Quando o Alferes Araújo, estava no comando da Companhia, dava-me
Licença de Toque de Ordem, normalmente para aquele dia, às vezes para aquele e
seguintes, quando não havia licença…desenfiava-me pelo portão da rua Marquês
da Fronteira, descia até às Amoreiras, passando pela Escola nº 13 onde havia feito a
instrução primária, apanhava o autocarro nº 12 e ia para casa.
Neste quartel, costumavam aparecer ao sábado, uns indivíduos já com idade
suficiente para não andarem a reinar aos soldados, que para ali iam receber
“instrução militar” eram Legionários. Quando estava de Sargento de Dia,
costumava por ali ficar, a ver o que faziam, uma ocasião até lá vi o Espanhol meu
vizinho, esse que eu não sabia ser “Legionário” trazia montes de galões nos
ombros, devia ser o dono da “Legião Portuguesa”
Uma ocasião, estando de serviço, fui para cima de um muro que existia por
cima da carreira de tiro dos 25 metros, que o quartel possuía. (aquele quartel tinha
tudo) lá em baixo, os “Legionários faziam fogo com a espingarda Maneliquer, estas
armas, tinham servido noutros tempos, o exército e a antiga Infantaria de Marinha.
Agora, depois de terem sido encasquilhadas para o calibre 22 mm, serviam para
treino de tiro.
O Capitão que dirigia aquela “tropa fandanga”, ao ver-me empoleirado no
muro a olhar cá para baixo, exclamou: - Oiça lá, você é maluco? – Não vê que pode
levar um tiro? – Saia já daí imediatamente.
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Eu saí imediatamente mas a pensar, como é que eu, a cerca de 10m de altura
dos alvos, poderia ser atingido por um disparo, devo esclarecer, que o muro onde
me tinha empoleirado, assentava por sua vez num morro, onde existiam umas
ruínas não sei de quê, (Romanas não eram) ora os alvos da carreira de tiro, estavam
colocados a cerca de 1,5m do chão, sabia isso perfeitamente, por já ter lá ido fazer
fogo de metralhadora Dreyse e com as armas que estavam agora a ser usadas pelos
“Legionários,”por conseguinte fazia-me espécie o poder ser atingido.
A pensar nisto lá fui à minha alegre vida de militar. E tanto pensei, que
descobri! – Os Legionários eram vesgos, era isso mesmo, mais vesgos que a ponte
de Tavira. E ainda por cima, vesgos de uma forma muito pouco vulgar: - Como
sabem, há seis formas conhecidas de estrabismo: - os olhos apontam os dois para a
direita, apontam os dois para a esquerda, apontam um para cada lado, aponta um
para o centro e o outro subtilmente para a direita ou vice-versa e ainda a conversão
no sentido do nariz. Eu acabava de constatar, que também podiam envesgar no
sentido vertical.
Com o ego pleno de felicidade, (o caso não era para menos, não havia eu
acabado de fazer, uma descoberta científica?) resolvi dirigir-me para o bar, com o
objectivo de dar a conhecer esta fantástica descoberta. No entanto, pelo caminho, a
dúvida instalou-se no meu espírito, aliás, é vulgar acontecer isto aos cérebros
verdadeiramente superiores.
A pouco e pouco, as dúvidas, cada vez eram mais. Não podia ser, não batia
certo. Arrepiei caminho e resolvi dirigir-me à secção de desenho. Tive sorte, apesar
de ser sábado, Estava lá um 1º Cabo, pedi-lhe uma régua, um esquadro e um
transferidor, sentei-me e comecei a desenhar. Primeiro tracei um segmento de
recta, em seguida, tracei uma perpendicular. À escala 1/20 marquei 25m na linha
horizontal, esta representava o solo, onde os atiradores se encontravam a fazer
fogo, na posição de deitados, no ponto dos 25m coloquei um atirador nessa
posição. Em seguida, marquei 10m na linha vertical e posicionei-me lá, liguei estes
dois pontos e obtive um triângulo, peguei então no transferidor e medi o ângulo,
50º. - Não podia ser!... Um homem deitado, com os cotovelos em terra, ainda que
muito vesgo, na vertical, não podia erguer uma arma naquele ângulo. É evidente,
que me podia ver, desde que a menina do olho toca-se a pálpebra, podia! – Mas, a
menos que a coronha da arma, fosse articulada e não era o caso, não podia levantála
até atingir aquele ângulo.
Esta constatação, encheu-me a alma de profunda tristeza, eu, que momentos
antes, sentia um aforismo enorme antevendo a alegria, que meu pai decerto sentiria,
por finalmente saber que o filho havia emergido da profunda ignorância em que
sempre o vira. Para ascender à categoria daqueles, que por obras valorosas, se vão
da Lei da morte libertando.
Ora merda para o assunto! Aqueles gajos, para me acertarem, no alto daquele
muro, só se fosse em pé ou de joelhos, e, a ser assim, era manifesta, premeditada e
estúpida, desobediência às ordens do Capitão que os comandava.
Na verdade, por tudo aquilo que acabo de descrever, como podia aquela
Unidade, ter a confiança do Governo de então? – Não era decerto verdade o que se
dizia, eram boatos, era crime! – E senão vejamos: - Em caso de ser solicitada a
intervenção do Batalhão, como seria? – Os carros, embora estivessem a ser
afinados constantemente, não se sabia se quando fossem necessários, estariam em
condições de utilização, Bom! Isso não era grave, íamos a pé! – Mas como e quem?
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– À frente, obviamente o Comandante, depois, a Banda? Os aprendizes de
corneteiros? – A Companhia de instrução de Transmissões, não! Não podiam, os
rádios não chegavam para todos. Então que fazer? – As duas Companhias
Operacionais, não tinham soldados, pelo menos e Organicamente falando, não os
tinham. Se fosse a um sábado? Estava o assunto resolvido. Ia o espanhol à frente
dos seus Legionários! – Não o sendo… talvez… os pombos, se conseguissem fazelos
voar em formação militar…talvez! - Podia ser que, defecando todos ao mesmo
tempo sobre o inimigo, se obtivessem alguns resultados, pelo menos, uma acção
desta natureza, deixaria o inimigo desorientado, depois era uma questão de explorar
o sucesso.
Contudo, em minha opinião, eram demasiados “ses,” operações executadas
com falta de meios, são operações condenadas ao malogro.
A ser verdade o que então se dizia (depositar o Governo, confiança nesta
Unidade): - Só podia ser por um motivo. Mas isso só o descobri, trinta e tal anos
depois.
Entre os vários Oficiais de Caç. 5, havia um Sr. Capitão, cuja figura me era
familiar, sentia que já o tinha visto em qualquer lado, mas, por mais voltas que
desse ao miolo, não havia meio de atinar qual. De estatura mediana, magro, cabelo
preto e abrilhantado, bigode fino, estilo Elrrol Flin possuía uma elegância, que
embora antiquada, não acentava nada mal ao ar misterioso que dele imanava. Por
vezes, este Sr. Capitão acrescentava ao uniforme, uma capa cinzenta e comprida.
Quando isto acontecia, realçava-se no meu espírito, a semelhança com a figura que
me parecia familiar. Acabei por deixar esta Unidade, sem nunca ter identificado
esta curiosa personagem, nem o lugar, onde eventualmente a teria conhecido.
Os anos passaram, e um dia, em conversa com o meu amigo Zé Paulo,
descobri que ele havia, tal como eu, prestado serviço em Caç. 5, conversa puxa
conversa, fomos desfiando as recordações dessa época. A certa altura, diz-me o Zé
Paulo – Pá, tu lembras-te do Capitão Mandrake? – Pumba! – Fez-se luz! – Ao cabo
de todos aqueles anos, havia finalmente descoberto, o lugar onde eu tinha travado
conhecimento com o Sr. Capitão: – Fora no Mundo de Aventuras! O homem era
Mandrake o Mágico, uma das personagens de Banda Desenhada, de que eu mais
gostava, tinha afinal convivido comigo no Batalhão de Caçadores nº 5 e eu não o
havia identificado! - Bem feita! – Perdi a oportunidade, de lhe pedir um autógrafo.
Foi só nesse dia, que fiquei a saber o porquê, do Governo depositar tanta
confiança naquela Unidade. Era Mandrake! o Mágico, era ele o motivo da
confiança do Governo. A magia, era a grande arma secreta do Batalhão, O mistério
estava desvendado!
De resto, neste quartel, não faltavam figuras dignas de análise, por exemplo: -
O 1º Sargento Silva. Este homem, diferenciava-se de forma muito positiva, do resto
dos sargentos. Estes não gostavam muito de nós, cabos milicianos, porquê? – Não
o sei, mas que o davam a entender davam. O 1º Silva, pelo contrário, nunca
transigindo a disciplina, era no entanto, cordial, paciente, sempre bem disposto,
nunca o ouvimos levantar a voz fosse a quem fosse, estava sempre pronto a ajudar
quem dele necessitasse. Ainda hoje, quando pretendo dar exemplo de um Homem
Sábio, vem-me à memória o 1º Silva. Este homem vivia com a família no quartel,
de facto o quartel dispunha de Habitações para algum do pessoal do quadro, que lá
prestava serviço (este quartel tinha tudo).
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O nosso 1º Silva tinha estado muitos anos em Macau, provavelmente teria
sido lá, que adquirira a sabedoria que lhe era reconhecida.
Como já disse, eu costumava obter Licenças de Toque de Ordem quase todos
os dias, ao princípio era o Alferes Araújo quem mas arranjava, mais tarde o
Comandante da Companhia, tendo tido conhecimento da minha actividade
profissional, pediu-me que ilustrasse alguns cartazes explicativos, das variadas
regras que pretendia implementar na companhia, não sei se regras será a palavra
certa, uma vez que elas já existiam, melhor seria dizer, que os tais cartazes serviam
para avivar a memória da rapaziada.
Evidentemente que me prontifiquei a executar a tarefa, mais a mais, não
tendo eu atribuído nenhum impedimento que me ocupasse as tardes, não era
razoável que o não fizesse. No entanto a sala de desenho não tinha condições de
receber mais ninguém, por isso propus ao nosso Comandante, executar a obra em
minha casa. Não tendo encontrado inconveniente, passei assim a sair todos os dias,
com os Toques de Ordem passados por ele.
Num desses dias, preparava-me para sair, quando o meu camarada e amigo
Torres, me perguntou vais apanhar o “12”? – Vou! Respondi – É pá! Então espera
ai por mim, também vou contigo, o Tenente deu-me um Toque de Ordem, vou para
casa. Dirigimo-nos ambos para a Porta de Armas, e, como habitualmente entramos
no gabinete do Oficial de Dia para apresentar a licença e pedir autorização para
sair.
Naquele dia estava de serviço um Aspirante Miliciano, recebeu-nos sentado
com as mãos cruzadas sobre a barriga, no cadeirão de couro que lá existia, tinha as
pernas esticadas e os pés apoiados num pequeno banco. Até aí tudo bem, não tinha
nada a ver com a forma como Sua Senhoria o nosso Aspirante, se espojava quando
se encontrava de serviço, mas quando o “rapazinho,” sem alterar a posição nem a
atitude, nos mandou por em sentido e começou a passar revista ao nosso
fardamento, aí já encontrei motivos para me indignar. Primeiro, começou por
ordenar ao Torres Que fizesse meia volta volver, observou-o com atenção e foi
repetindo a ordem, até ele ter dado uma volta completa, após ter entendido dar por
terminada a inacreditável revista mandou-o retirar. Como o Torres ficasse à espera
de mim, perguntou-lhe: - Não me ouviu dizer, para se retirar? – Pode sair! – Está à
espera de quê? – O Torres respondeu que estava à minha espera, porque ambos
íamos para o mesmo sítio; – Ah!...vão?. E fazendo o gesto de quem descarrega
tijolo, perguntou: - vão trabalhar juntos não?... Você não sabe se o seu camarada
está em condições de sair! Pode retirar-se já lhe disse!
Depois desta troca de palavras, passou a dedicar-me a sua atenção. Meia volta
volver, repetiu-se a cena. Não está em condições de sair! – Tem uma nódoa nas
calças! Eu olhei e efectivamente uma pequeníssima nódoa ensombrava o meu
brilhante uniforme. Mal se via, mas aos olhos daquele arguto e rigoroso Aspirante,
não havia escapado. Vá lavar as calças e depois venha cá mostrar-mas.
Dirigi-me para a porta do gabinete e ao chegar, voltei-me e tomei a posição
de sentido; - Meu Alferes dá licença! – Pode sair! Respondeu.
E foi aí que o apanhei! – A resposta como é óbvio era no sentido de poder
sair do gabinete, mas isso a sentinela não podia saber, o que ela ouviu, foi, pode
sair!
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Em duas ou três passadas estava na rua, corri para a escadaria e foi a correr
que a desci. Ainda vislumbrei o “rapazola” a correr a traz de mim, mas a figura
ridícula que certamente viu que faria, se continuasse de pistola e braçadeira
vermelha a perseguir outro militar, pela rua de Campolide abaixo, deve tê-lo
dissuadido.
No dia seguinte às 08.00h da manhã, voltei a entrar a porta de armas. O
Aspirante não estava no gabinete, já calculava, era a hora do pequeno-almoço,
estava no refeitório a acompanhar a refeição, uma das suas funções. Dirigi-me para
a secretaria da companhia como habitualmente, já lá se encontrava o 1º Silva.
Cumprimentei-o, quando me viu, perguntou-me: - Então ò Costa Ferreira! Sabe que
tenho aqui uma participação do Oficial de Dia, que lhe diz respeito? – Dei-lhe
conta do que se havia passado comigo no dia anterior, contando-lhe tudo aquilo
que, e como, se tinha passado.
Olhe! – Disse-me, – você não vai deixar de ser castigado, isso é quase certo, o
nosso Comandante não é para graças! – Mas não vai faze-lo, sem primeiro o ouvir.
Por isso, quando ele o chamar, vai contar-lhe o que se passou, exactamente da
mesma forma que me contou a mim, vá lá a sua vida que quando eu souber alguma
coisa digo-lhe.
Ao fim da manhã, passei pela secretaria e fiquei a saber, que o Aspirante
tinha retirado a participação. Segundo me disse o 1º Silva, o nosso Aspirante tinha
por lá passado, a saber se eu já tinha chegado - que sim: - Respondeu-lhe, que tinha
ali estado na secretaria, que estava informado da participação que contra ele existia,
mas que sobre o que ocorrera, tinha uma versão um pouco diferente da que era
participada. Disse-me mesmo, que dada a forma pouco comum, como a revista de
saída tinha decorrido, tinha ficado com a convicção de que o Oficial de Dia tinha
estado a brincar com ele e com o camarada que o acompanhava. De resto tivera já o
cuidado de indagar junto do Cabo Miliciano Torres, o que se tinha passado e que
este havia corroborado esta versão. Depois de ouvir o 1º Sargento e ter por ele
ficado a saber que certamente o nosso Comandante me iria ouvir, antes de
determinar qualquer punição, o nosso Aspirante retirara a participação na condição
de que eu lhe fosse pedir desculpa.
Ó Costa Ferreira! – Disse-me – vá lá pedir desculpa para encerrar o assunto.
Compreendi o que o nosso 1º Silva pretendia, as desculpas serviriam para que
o Sr. Aspirante lavasse a face, manhas, sem dúvida aprendidas na China.
O nosso Aspirante recebeu-me com um ar severo, mas de pé. Ainda me fez
acusações de desobediência e manifesta indisciplina: - Você fugiu daqui a correr! –
Não meu Aspirante! Eu limitei-me a correr para o autocarro, tinha perdido muito
tempo na revista, se o não fizesse iria perde-lo.
Voltei à secretaria, informei o 1º Silva que o assunto estava encerrado, então
o ouvi uma máxima de que nuca mais me iria esquecer: - Ò Costa Ferreira, quando
quiser ver um Homem Importante, dê-lhe a guardar a chave da retrete.
Este Oficial, apareceu um dia, à porta da Companhia, com um soldado e
dirigindo-se ao nosso primeiro, disse-lhe: - este homem estava no refeitório, como
não tinha que lá estar a esta hora, dê-lhe um castigo! – Fique descansado meu
Aspirante, vou castiga-lo!
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Quando o Oficial se retirou, o 1º Sargento Silva virando-se para o soldado
disse-lhe: - Pá, faz duas flexões.
Passado algum tempo, o Aspirante voltou lá a saber se o homem já tinha
recebido o castigo. Sim meu Aspirante – respondeu o Primeiro. Ah!... Então está
bem.
Outro homem digno de registo, era sem sombra de dúvida, o próprio
Comandante. Já não me lembro do seu nome, aliás não sei sequer se algum dia o
soube, mas para o caso pouco importa. Este nosso Comandante não era de facto
para graças; de grande estatura, modos bruscos, era, posso dize-lo, o terror do
Batalhão que comandava. Era raro vê-lo fora do gabinete onde trabalhava, mas
quando o fazia o pânico instalava-se por onde passava. Eu por mim adorava ver
através da porta da secretaria, a debandada geral, daqueles cuja consciência lhes
dizia estarem na calacear, fora do local onde deviam estar e a fazer aquilo que
deveriam estar a fazer.
Era digno de se ver, a rapidez com que as áreas adjacentes às companhias, se
esvaziavam, pareciam as ratazanas que debandavam debaixo dos meus pés, quando
estando de serviço, passava altas horas da noite pelos infindáveis corredores
daqueles edifícios, efectuando as habituais rondas. Gostava sobretudo de observar a
velocidade de ponta que podia atingir, uns Sargentos, dos moles e gordos que por
lá deambulavam era extraordinário, como aquelas árias se esvaziavam em
segundos. O nosso Comandante, quando se avistava, vinha cabisbaixo, como se
viesse a pensar, que afinal comandava uma Unidade fantasma.
Nós, tínhamos ao serviço um rapaz, que todos os dias íamos buscar à prisão,
estava lá a cumprir castigo por alguma malfeitoria, mas não sei qual. Quando para
lá fui, já esta prática estava em uso e assim continuou. Íamos busca-lo de manhã e
vinha à responsabilidade daquele que o fosse buscar. Era bom rapaz, não havia
perigo, retribuiu sempre a confiança que nele se depositava. Para nós era muito útil,
fazia-nos pequenos recados, nos intervalos da instrução, ia ao bar buscar a
cervejinha ou a laranjada com que nos refrescava-mos, também executava algumas
tarefas na secretaria, chamávamos-lhe “o Chico”.
Numa daquelas, raras, ocasiões em que o nosso Comandante atravessava o
espaço fronteiro às Companhias, apercebeu-se que na sua Unidade, não estavam
aquartelados apenas fantasmas, havia um ser vivo “o Chico.” É verdade o Chico,
distraído não fugira, aliás não era seu hábito fugir, se o fosse não estaria ali.
Quando deu pela aproximação do Comandante, já era tarde para se pirar, assim
adoptou a posição de sentido, com o peito para fora, a barriga para dentro e as
mãos nos bolsos. Eu sei que estava frio, mas apesar disso, acho que ele devia ter
tirado pelo menos a mão direita do bolso e feito a continência. Como assim não foi,
o Comandante ao passar por ele, nem parou, ergueu a mão e desferi-lhe uma tal
estalada na cara que “o Chico” em desequilíbrio, se estatelou no chão.
Fomos ajudá-lo a levantar e a título de conforto, perguntamos se estava muito
aleijado. – Não! – Isto não foi nada! - Nós até nos damos muito bem, só que às
vezes ele tem destas coisas.
Outras personagens havia naquela Unidade, igualmente dignas de registo,
mas dentre todas, o 2º Sargento Vasconcelos, tinha lugar primordial na lista. Um
espanto! Uma maravilha! Devia ter perto de 80 anos, ainda se encontrava ao
serviço e conseguira um feito verdadeiramente invulgar, nunca havia passado do
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posto que tinha, 2º Sargento, mas com uma experiência inultrapassável. Era, devia
ser, o Matusalém do Exército Português. Mas sobre este homem falarei mais tarde.
Acabei de vos dar a conhecer o nosso “impedido Chico”, mas na prisão do
quartel existiam outros presos, mas esses não tinham ninguém que os quisesse, não
eram de confiança. Mas não era por isso que deixavam de sair, saíam e ao que
parecia faziam-no quando muito bem entendiam.
A prisão de Caç. 5 não se situava, como noutras Unidades que conheci, na
casa da guarda. Ficava num edifício no interior do quartel contíguo à Igreja de
Santo António, ou seja: Tinha paredes-meias com a Igreja, embora esta se
encontrasse fora da Unidade.
E, por assim ser, trazia alguns problemas de ordem prática como por
exemplo: levar a comida aos que lá se encontravam ou um pouco pior, como a
prisão não tinha lavabos, cada vez que um dos soldados ali “aboletados”
necessitava de recorrer a este tipo de estrutura higiénica, tinha que pedir à praça da
guarda que ali montava a segurança que o acompanhasse.
Certo dia, um dos presos, pediu para ir ao lavabo e como habitualmente, a
praça da guarda abriu-lhe a porta e acompanhou-o. O caminho era relativamente
longo, era necessário atravessar a parada toda. No regresso, o preso, que seguia um
pouco à frente do guarda, larga a correr em grande velocidade, sobe umas escadas
que davam acesso ao muro que separava o quartel da travessa da Igreja e junto à
guarita, onde de noite era colocada a sentinela do reforço, lança-se no espaço.
Realmente lançou-se literalmente no espaço, pois a altura do muro era assustadora,
mesmo para quem estivesse habituado a saltar em profundidade, se estivesse na
posse de todas as suas faculdades mentais, não daria aquele salto.
Passados os primeiros instantes de estupefacção, todos corremos para o cimo
do muro, esperando ver lá no fundo, do outro lado, o saltador completamente
desfeito, mas não, do outro lado apenas se podiam distinguir a marcas profundas,
que as suas botas tinham deixado no terreno, amolecido pelas recentes chuvas.
Uma outra fuga lá ocorreu, mas esta foi mais sensacional, assim mais ao
estilo “Conde de Monte Cristo” como disse, a prisão tinha paredes-meias com a
Igreja. Um dia, quando a porta da cela foi aberta para levar o pequeno-almoço ao
preso que na altura era o seu único ocupante, a praça da guarda recebeu um
tremendo choque; a cela estava vazia, inacreditável, a cama encontrava-se feita e a
cela arrumada, parecia nunca lá ter estado ninguém. A primeira reacção do guarda
foi correr a dar parte ao Sargento da Guarda, da ocorrência de tão inesperado e
misterioso acontecimento. Ao ter sabido do desaparecimento do preso, o Sargento
pede que se chame o Oficial de Dia e juntamente com este dirigem-se à prisão.
Mistério insondável…que acontecera? Dispostos a esclarecer o estranho
acontecimento, procede-se ao interrogatório das praças da Guarda à Polícia, bem
como dos homens do reforço. Porem, ninguém tinha visto nem ouvido nada; que
acontecera? – Bruxaria! – Exclamei eu, que entretanto me tinha juntado ao já
numeroso grupo que rindo, dava palpites e pronunciava piadas de gosto duvidoso.
De súbito ouviu-se um grito, Foi por aqui, meu Alferes! Foi por aqui que o
gajo se “pirou.” Aquele homem no meio da confusão e da vozearia, tinha, num
rasgo de inteligência do género…”é óbvio meu caro Doutor Watson! “ descoberto
a verdade do tão estranho e inusitado acontecimento.
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A cama da cela encontrava-se, por razões de racionalização do espaço,
encostada à parede comum com a Igreja, a manta que a cobria, tocava no chão, o
detective improvisado limitara-se a fazer aquilo de que ninguém se havia lembrado,
levantara a manta e viu o buraco aberto na parede.
Como disse, a parede velha de séculos, tinha cerca de 1m de espessura, o
homem tinha-se limitado a escavar com um dos ferros da cama, a velha parede de
alvenaria apodrecida. Deve tê-lo feito numa só noite pois fazer desaparecer o
entulho não era fácil, de resto, ele via-se, tinha sido removido para o outro lado da
parede, a cela limpa, indicava que após a escavação houvera o cuidado de limpar
todos os vestígios da obra. O ferro da cama de novo colocado no seu lugar e esta
impecavelmente feita e de novo encostada à parede (deve tê-la puxado, já depois de
se encontrar dentro da Igreja) indicava que o havia feito apenas pelo gozo de deixar
a traz de si um rasto de mistério. Efectivamente aquele prisioneiro era um
“cómico” dentro da Igreja foi encontrada sobre a borda da pia de àgua-benta a
gillete e o pincel com que se barbeara antes de “cavar”.
A prova das suas capacidades burlescas, tivemo-la passado cerca de um mês
quando à Porta de armas, apareceu um soldado que perguntou á sentinela se tinha
sido daquele quartel que havia fugido um preso, tendo obtido uma resposta
positiva, declarou: - Então prende-me que fui eu!
Esta vidinha, que como se vê, não deixava de ter alguma piada, tinha para
mim entrado naquela fase de rotinas monótonas. Dividia-se entre instrução,
dispensas de toques de ordem e serviços de escala. Um dia porém, fui chamado à
secretaria da Companhia, lá chegado compreendi de imediato que tinham acabado
as baldas. O 1º Silva informou-me que não tendo eu, ao contrário dos meus
camaradas nenhum “Impedimento,” a partir daquela data e porque o actual
responsável tinha sido mobilizado, passava eu a ser o encarregado do armazém de
fardamento, que fosse ter com ele afim de receber a “Carga” do armazém.
Ao tomar conhecimento desta desgraça, vieram-me as lagrimazinhas aos
olhos, tal como no dia em que a minha caninha de bambu sextavado, levada pelo
peso do carreto de pesca à truta que tinha instalado, fora a pique na Doca de Algés.
A cana, essa afundou-se com dignidade, de ponteira para cima. Isto
parecendo não ter importância, tem para mim um significado fundamental. Há
certas coisas na vida que quando acontecem devem ser enfrentadas com dignidade
e neste caso a minha caninha portou-se como o fazem as grandes canas, foi ao
fundo como aqueles navios que se afundam de poupa, erguendo aos céus a proa
onde os escovéns, como dois grandes olhos, vêm o mundo pela derradeira vez. Não
como aqueles chavecos que na aflição do naufrágio, perdem a coragem e se deixam
ir a pique sem honra nem glória, deixando-se morrer deitados a um dos bordos
como se de um cetáceo morto e apodrecido se tratasse, ou então que afundam
metendo a proa por debaixo da água como quem se esconde da morte, elevam a
poupa na vertical mostrando o leme e os hélices, fazendo lembrar alguém que no
pavor desse momento enterra a cabeça e eleva os pés, deixando à mostra as partes
vergonhosas.
Eu nem por sombras estive à altura daquela cana, ao ouvir a sentença do
nosso 1º Silva, fiquei de rastos, uma lástima, uma vergonha, não podia ou não sabia
como enfrentar a calamidade que sobre mim desabara, nesse dia senti vontade de
meter a proa debaixo de água, ou então de vinho o que certamente acabaria
definitivamente com aquela mágoa.
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Não, não morri, no entanto a partir desse dia fui enterrado vivo num
armazém, onde o fardamento chegava ao tecto, as guias “Mod.º 9” e o filho da puta
do livro de carga, atormentaram-me o corpo e a alma até ao bendito dia em que
parti em diligência para outro quartel bem longe dali.
No dia seguinte fui ao armazém de fardamento “ tomar posse” do meu
tormento. O furriel recebeu-me de livro na mão e um sorriso seráfico nos lábios
dizendo-me: - Assinas ou queres conferir? Como Cristo quando caminhava para o
Calvário mas, ao contrário Dele, com uma vontade enorme de agarrar o Furriel
pelo pescoço e estrangulá-lo logo ali, respondi-lhe: - Assino, dá cá essa merda!
Conferir a existência do Depósito, levar-me-ia seguramente, uns 5 anos de
serviço, desde que trabalhasse das 08.00h até ao toque de Ordem.
A partir deste dia, passei a ser visita frequente do gabinete do Comandante.
O Exército é uma Instituição eficiente. O saber, não só de experiência feito
como aquele que naturalmente advém do estudo e planeamento, nunca deixou nada
ao acaso, tudo foi previsto, até a insuficiência de habilitações da (evidentemente
que me refiro à situação existente à quarenta anos) classe de Sargentos, tinha sido
estudada. Assim, praticamente todo o serviço de escrituração tinha sido de tal
modo simplificado, que não eram necessários grandes conhecimentos académicos,
para desempenhar com eficácia estas funções. Na minha opinião nesse capítulo
estávamos ainda no tempo do Ábaco, vou tentar dar-vos um exemplo:
Os militares só podiam encontrar-se numa de quatro situações, ou estavam ao
serviço e nesse caso eram abonados de alimentação e pré, ou estavam de licença e
eram abonados apenas de pré, se estivessem no hospital, tinham a alimentação e
metade do pré e no caso de estarem presos, eram apenas abonados de alimentação.
Assim, bastava colocar no mapa do pessoal, a situação de cada um e depois ir
colocando na casa correspondente a cada dia do mês um traço, caso situação fosse
alterada, era assinalada com a inicial da nova situação e depois continuar a traçar as
casas até ela se alterar de novo. No fim do mês o militar era abonado de acordo
com o número de traços existentes em cada situação.
Também as existências do material estavam simplificadas, no caso do
fardamento, e, por ser dele que eu tinha ficado encarregado, vou tentar explicar
como se procedia, ou antes, como se devia proceder:
A roupa, como toda a gente sabe, tem uma duração no tempo, que no seu
limite a torna incapaz de ser vestida. O fardamento sendo roupa, está sujeito ao
mesmo princípio, só que na tropa o limite é fixo, tem data, não se veste mais dia,
menos dia, morre, acaba, vai para trapo de limpeza ou destino menos digno.
A duração do fardamento não era igual para todas as peças, por exemplo: o
capote, se não me falha a memória, tinha 24 meses de duração, já uma camisa tinha
uma duração muito menor, um par de botas tinha a duração de 1 ano podendo caso
se justificasse, levar meias-solas ao cabo de seis meses. Suponhamos pois, que o
militar ao entrar para a tropa, recebia fardamento novo e que por qualquer motivo
saía ao fim de seis meses, ao fazer o espólio, o fardamento por ele entregue teria
que ser distribuído a outro, que o usaria até que perfizesse a duração.
Isto dito assim não parece complicado, acontece porém, que a burocracia de
controlo de milhares de peças nesta situação apesar de muito simplificada era, pelo
menos para mim, morosa e sobre tudo aborrecida. Um dos instrumentes desse
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controlo era a guia modelo 9, era nela que eram lançadas as durações das diversas
peças, para além dessa guia malvada, havia ainda o maldito livro de carga; esse foi
sempre e durante o tempo que tive a meu cargo este serviço, o causador das
descomposturas que recebi do Comandante do B. C. 5.
Duas a três vezes por semana, tinha de ir com o monstruoso livro ao
Comandante, aquele senhor, como já deixei transparecer, tinha um feitiozinho…
enfim, tinha mau feitio. Quando lá chegava pedia licença para entrar e colocava-lhe
o livro sobre a secretária (livro este bastante grande e pesado pela quantidade de
asneiras que eu lá escriturava), em seguida era só aguardar alguns segundos, até o
Sr. Comandante dar o primeiro murro no tampo da secretária após o que se
seguiam os vitupérios habituais, aquele que me custava menos ouvir era
INCOMPETEEEETE! Depois seguia-se o também já habitual, ponha-se na rua seu
palerma, vá emendar essa porcaria e não volte cá mais com essas asneiras.
Eu por mim não voltaria lá mais, nem ao gabinete do Comandante, nem à
unidade por ele comandada, mas isso parecia estar fora de causa, na tropa ninguém
era despedido por incompetência, se isso fosse prática militar poucos lá ficariam.
Rotineiramente, saía do gabinete do Comandante e dirigia-me para a
secretaria da Companhia, onde o primeiro Sarg. Silva mais uma vez cheio de
paciência chinesa (tinha estado em Macau muitos anos) me ajudava a pôr em
ordem aquela…coisa. Ao cabo de algum tempo arranjei forma de minimizar os
estragos que o Comandante estava a fazer no meu amor-próprio, antes de pedir
licença para entrar, perguntava à ordenança do comandante como estava a
disposição do Homem, de um modo geral a resposta era: - Não venha cá agora que
ele está brabo como ó caraças! – Não entre agora nosso cabo miliciano! Não entre
agora!
Se até ali a minha vida de quartel não tinha sido má, instrução da parte da
manhã, dispensas de Toque de Ordem de tarde, agora tinha-se tornado um horror.
A instrução dos corneteiros nunca mais acabava, a tarde tinha-a ocupada com o
fardamento e para compor o ramalhete a escala se Sargentos de Dia tinha passado
de oito, para sete dias, tendo-me calhado a mim fazer o Domingo. Quando isto
acontece, é costume fazer-se uma escala de fins-de-semana, mas para isso é
necessário que todos se ponham de acordo, o que não foi o caso.
O serviço de Sargento de Dia não tem nada de complicado, senão reparem,
até eu era capaz de o desempenhar sem grandes problemas. Mais ou menos
limitava-se a fazer as formaturas das refeições, da alvorada e recolher e a ronda
nocturna, esta com o meu habitual azar calhava-me invariavelmente da 01.00h às
03.00h ou então das 03.00h às 05.00h isto significava ser acordado no melhor do
sono, de facto, a razão de nunca me ter sido sorteada uma ronda por exemplo: das
21.00h às 23.00h. foi sempre um mistério sem solução.
Ao Domingo quando saía do autocarro nº 12 nas Amoreiras, já tinha à minha
espera uma fila de corneteiros a pedir dispensa do almoço, compreendia, por que a
presença obrigatória nesta refeição, estragava o dia a quem o quisesse aproveitar
fora do quartel e assim desde as Amoreiras até à rua de Campolide, ia tomando
nota dos números daqueles que se queriam baldar, obviamente que eu não tinha
poderes para dar dispensas a ninguém, no entanto era um risco mais ou menos
calculado.
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Depois da formatura do recolher dirigia-me ao Gabinete do Oficial de Dia,
onde era então feito o sorteio das horas de ronda e nos era dada a senha e contra
senha daquele dia. Para aqueles que não fizeram o serviço Militar (os homens da
minha idade que o não fizeram devem ser raros), vou tentar explicar como se fazia
naquela época a segurança nocturna das instalações militares:
Durante o dia as sentinelas que guardavam a Porta de Armas e outras que
tivessem necessidade de vigilância (constituíam aquilo a que se chamava Guarda à
Polícia), durante a noite os homens da GUARDA eram reforçados por um
determinado número de homens que constituíam o chamado “ Reforço” e que
colocados em pontos estratégicos, garantiam a segurança nas envolventes das
instalações. Ao longo da noite e com o objectivo de se manterem despertos e
vigilantes, davam o “Grito de Alerta” o primeiro gritava: - Sentinela Aleeeerta! Ao
que o seguinte devia responder: - Aleeeerta Estááá! Voltava então o primeiro a
gritar: - Passo Palaaaavra! – Se o circuito fosse interrompido antes do fim, era sinal
que alguma coisa tinha acontecido, no mínimo a sentinela tinha adormecido.
A senha e contra-senha serviam para que quem se aproxima-se das sentinelas,
pudesse por elas se identificado como elemento não hostil, por exemplo: o sargento
de ronda o oficial de dia ou outros que estivessem em condições de o fazer.
Pois como se pode constatar, este serviço não era nenhum bicho-de-setecabeças
e com disse até eu que não era dos menos espertos, o desempenhava com
alguma segurança. No entanto no Batalhão de Caç.5 esta tarefa carecia de uma
certa coragem. Realmente para quem se dirigisse aos postos da de sentinela altas
horas da noite, era obrigado a atravessar praticamente às escuras os tenebrosos
corredores do antigo Convento e garanto que não era tarefa fácil pisar o soalho de
madeira apodrecida dessas passagens. Não me tenho, nem nunca me tive como
medroso, mas aquilo enervava o mais valente, a madeira a ranger debaixo das botas
e cujo ruído aquela hora da madrugada era ampliado de forma ensurdecedora,
juntava-se ao barulho horripilante das milhares de patas das nojentas ratazanas que
por lá deambulavam aquelas horas e que fugiam em todas as direcções há nossa
aproximação. Estes nojentos bichos (alguns pouco menores seriam que coelhos
bravos) tinham certamente vindo da E.P.E de Tancos onde deviam ter tirado a
especialidade de Sapadores, pelo menos a quantidade inacreditável de buracos que
abriam nas paredes e soalhos dos corredores, levavam a querer que assim fosse. Por
outro lado o nosso Comandante sabia da sua existência e nada fazia para obstar à
sua permanência na Unidade, o que só reforçava a minha convicção de que eram
realmente a arma secreta do seu Batalhão.
Eu fazia a este respeito um raciocínio que me parecia fazer todo o sentido; se
assim não fosse, porque não acabava ele com os ratos e ratazanas? No meu
modesto entender não haveria nada de mais fácil, bastava que ele contrata-se o
Flautista de Hamlin. Este habilidoso punha-se a tocar a sua flauta nos corredores e
levava certamente todos os malditos ratos a segui-lo, depois era dirigir-se Parque
Eduardo VII abaixo até a Av. da Liberdade, em seguida desceria até ao Tejo e
despejava os sacanas dos bichos no rio quando a maré descesse com força, de
certeza que eles ao quartel não voltavam.
Outra hipótese, esta bastante mais barata caso obtivesse êxito, era pegar num
dos Sargentos da banda que tocasse flauta e pô-lo a tocar até ele descobrir a música
mágica, então o trabalho far-se-ia com a prata da casa. Daí a minha convicção de
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que os animais estavam militarizados com especialização tirada e faziam parte da
guarnição do Bat. Caç.5.
Um belo dia, cansado desta vida de escravatura e tendo descoberto
milagrosamente que os militares quando estavam doentes internados na enfermaria
ou no Hospital Militar, quando tinham alta apresentavam-se ao serviço e no dia
imediato entravam no serviço de escala. Assim sendo, a minha salvação podia estar
à vista, bastaria conseguir que o médico me desse baixa dois ou três dias de modo
que a alta coincidisse com um dia de semana favorável ou seja; que o serviço fosse
prsetado
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